O livro mítico de Lúcio Cardoso ganha nova edição

22/04/2021 07:42
Por Estadão Conteúdo

Livro e filme, uma nova edição de Crônica da Casa Assassinada pela Companhia das Letras, e um roteiro já pronto de George Moura, à espera de virar filme de José Luiz Villamarim, reabrem uma das páginas gloriosas da literatura brasileira – o culto a Lúcio Cardoso. Mineiro de Curvelo, ele começou a publicar seus primeiros textos muito jovem. Aos 22 anos – nasceu em 1912 -, surgiu o primeiro romance, Maleita. Em 1959, aos 47, sua obra-prima. Já se passaram 62 anos e Crônica da Casa Assassinada só faz crescer com o tempo. Livro mítico, conta a história da decadência de uma família de Minas Gerais. A cada geração, os Meneses ficam mais pobres, mas seguem respeitados na comunidade. A casa, em uma chácara, deteriora-se como eles próprios. É vista com reverência, mas também com desconfiança. O que se passa lá dentro?

Crônica já foi filme (A Casa Assassinada, de Paulo César Saraceni, em 1970) e peça (de Dib Carneiro Neto, montada por Gabriel Villela, em 2011). A nova edição inclui estudo crítico de Chico Felitti. “A matriarca da casa é a própria casa. Suas alamedas são veias que irrigam o coração que é a casa-grande”, ele escreve no prefácio. Talvez se deva destacar o contexto da literatura brasileira em que surgiu a obra. Graciliano Ramos havia morrido em 1943. Cornélio Penna, mestre declarado de Lúcio, morreria em 1958. O também mineiro João Guimarães Rosa havia publicado Grande Sertão: Veredas em 1956. Na Bahia, em 1958, Jorge Amado criou a emblemática Gabriela, Cravo e Canela, que se multiplicaria em novela, filmes e peça. No Sul, e ao longo de toda a década de 1950 – terminaria em 1962 -, o gaúcho Erico Verissimo montara outra família mítica, os Cambará, no monumental O Tempo e o Vento.

Na presidência, Juscelino Kubitschek fazia o Brasil avançar 50 anos em cinco. Construiu Brasília, implementou a indústria automobilística. A trilha da época era a bossa nova. O País mudava. Fazia todo sentido discutir as grandes famílias e dar adeus ao Brasil senhorial. A modernidade de 1922 multiplicava-se. Todos esses livros também são, na forma, arautos de uma nova linguagem. Mas o Brasil já era o campeão das desigualdades. Em 1960, surgiu o diário de uma favelada, Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. O livro e a autora estão sendo resgatados na esteira do movimento #VidasNegrasImportam. A sombra de uma grande mulher já se projeta na escrita da época, Clarice Lispector.

Ela já publicara Perto do Coração Selvagem. Passou os anos 1950 publicando Alguns Contos. Nos 60 e 70, surgiram A Paixão Segundo G.H. e A Hora da Estrela. Pode-se ler/ver o Brasil nas páginas de todos esses clássicos. O roteiro de George Moura nasceu de uma encomenda de seu parceiro, o diretor de cinema e TV José Luiz Villamarim. Juntos, criaram O Canto da Sereia, Amores Roubados, O Rebu e Onde Nascem os Fortes na TV, e Redemoinho no cinema. “Não havia lido o livro de Lúcio. Quando o fiz, já foi pensando na adaptação. Lia e ia anotando, mas o livro é tão forte que me apanhou como um redemoinho. Esquecia-me do filme. Fui arrastado naquela espiral barroca de desejos humanos. Crônica, para mim, é uma tragédia do desejo.”

Diferentemente de Moura, Dib Carneiro, que também escreveu a peça a pedido do diretor Villela, já tinha um conhecimento profundo, e apaixonado, do livro. “Sempre fui, desde a adolescência, um devoto deste romance montado como um quebra-cabeça, uma colagem de fragmentos de cartas e bilhetes dos membros de uma mesma família, e seus agregados e visitantes.” Dib nasceu numa família libanesa, no interior de São Paulo. Moura veio do Recife, de uma família católica. Estudou em internato religioso. No colégio misto, havia a capela, quase sempre às escuras e deserta, em que garotos como ele faziam suas primeiras descobertas amorosas e sexuais, trocando beijos com as garotas ao pé da cruz. “Villa teve essa mesma experiência em Minas, somos produtos dessa repressão.”

Quando leu Crônica, Moura disse que a sensação era de que o livro queimava em suas mãos. “Existe todo aquele desejo reprimido. Ler o livro é abrir uma comporta pela qual jorra tudo o que estava interdito. Some-se a decadência econômica e social, e o quadro é de degradação.” Moura evoca um poema de João Cabral de Melo Neto, As Latrinas do Colégio Marista, para mostrar como a experiência humana pode ser complexa. “Tanta dor, tanto sofrimento.” Já havia isso em Redemoinho – “Era uma adaptação de O Mundo Inimigo – Inferno Provisório, Vol. II, de outro autor mineiro, Luiz Ruffato”, lembra. Como se não bastasse tudo o que tem de forte em matéria de sexo e desejo, o livro arrebatou os críticos pela riqueza de sua estrutura, a forma epistolar a que já se referiu Dib Carneiro.

Poema

Carlos Drummond de Andrade, num poema em homenagem a Lúcio, fala das personagens como “retratos espectrais do ser”. Para o crítico Eduardo Portella, o tema do livro é “a exposição da metástase moral da chácara dos Meneses”. Na trama, uma estranha, Nina, chega à casa depois de se casar com o irmão caçula, Valdo. Nina é atraída por uma suposta riqueza dos Meneses. Descobre a decadência. Entra em choque com Ana, a mulher de Demétrio, o mais velho. Tem um affair com o jardineiro (Alberto) e tudo indica que, dessa ligação, tenha nascido André. Ele desencadeia o relato, narrando a morte de Nina, que coloca o ponto final em outra interdição, o incesto entre mãe e filho. E ainda existe o irmão do meio, Timóteo, que vive encerrado em seu quarto, do qual só sai para o enterro. O grand finale de Timóteo – imenso de gordo pela inatividade dentro da casa e vestido de mulher – expõe um dos temas fantasmagóricos da obra do escritor, a homossexualidade.

A adaptação de Saraceni evoluía para a cena em que Timóteo (Carlos Kroeber) irrompe no velório de Nina (Norma Bengell), para escândalo de todos. A de Dib começa com André levando as flores – violetas – para Nina, a quem chama de ‘mãe’. Ele explica: “Não podia fazer uma adaptação que não reverenciasse a obra como expoente máximo da nossa melhor literatura. Me recusei a tomar o caminho de outros adaptadores, que retiravam do livro apenas a trama e ignoravam sua forma epistolar. Eu quis as cartas em cena. Lúcio merecia isso”. A peça está publicada na íntegra na série Dramaturgia Brasileira, da Giostri Editora.

O roteiro de George Moura subverte a cronologia. Ele não inicia o que será o filme de Villamarim pela morte de Nina. Seu eixo é a oposição entre desejo e repressão, Nina e Ana. De acordo com o cronograma, o filme já teria sido rodado, mas aí veio a pandemia que interrompeu as gravações de Amor de Mãe, a novela de Manuela Dias que teve direção geral de Villamarim. Como se não bastasse, Villa foi catapultado à direção de dramaturgia da Globo e agora Crônica está parado. Por quanto tempo? Uma boa saída, por enquanto, é a leitura do livro. Crônica é tão imagético nas suas 560 páginas que, ao fazê-lo, o leitor vai visualizar o próprio filme que estará construindo na cabeça.

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