‘O nosso sistema nervoso não consegue distinguir a nossa experiência de um acontecimento real da nossa experiência com a ficção’, diz Carla Madeira em entrevista exclusiva à Tribuna de Petrópolis

Por Aghata Paredes

Autora de obras como “Tudo é Rio” (2014), “A Natureza da Mordida” (2018) e “Véspera” (2021), Carla Madeira é uma das vozes mais influentes na literatura brasileira contemporânea. Nascida em Belo Horizonte, onde ainda reside, é sócia e diretora de criação da agência de comunicação Lápis Raro, sediada na capital mineira. Além de suas contribuições para a literatura, onde ocupa lugar de destaque como uma das autoras mais lidas no Brasil, Carla Madeira também se expressa através da música e da pintura. Em seu penúltimo romance, a mineira pintou 40 quadros enquanto dava vida à narrativa das personagens Olívia e Biá.

Foto: Divulgação

Em 2014, lançou seu primeiro livro, “Tudo é Rio”, pela editora Quixote-Do, que rapidamente se tornou um sucesso editorial, ultrapassando a marca de 200 mil exemplares vendidos. O livro conquistou os leitores e recebeu elogios rapidamente, inclusive da escritora e cronista Martha Medeiros, que o destacou como a revelação literária do ano em sua coluna na revista ELA. Diante da repercussão positiva, o romance ganhou uma nova edição pela Editora Record em 2021.

“Perder amores é escurecer por dentro, uma memória do corpo que o entardecer evoca quando tinge o céu de vermelho.”

Tudo é Rio.

Quatro anos após sua estreia literária bem-sucedida, Carla Madeira lançou “A Natureza da Mordida”, novamente pela Quixote-Do, em 2018. Com críticas favoráveis, a primeira tiragem se esgotou em menos de um ano, levando à edição de uma nova versão pela Record em 2022.

O que você não tem mais que te entristece tanto?

A Natureza da Mordida.

Em 2021, a autora publicou seu terceiro romance, “Véspera”, também pela Editora Record, explorando as complexidades de uma família desestruturada. Neste período, ela alcançou a posição de autora brasileira mais vendida da atualidade.

“O tempo, inabalável na mansa malha dos dias e das noites, nunca ofega. Inspira e expira o ventre onde tudo se cria. A mais sutil mudança na pedra, o deslocamento da menor partícula de ar divisível, o mínimo escorrer das águas, a insignificante transformação humana se dão nas tramas airadas do tempo. O tempo flutua invisível e em espesso presente. Nada apodrece sem ele. Nada floresce. Nada se torna amável. Nenhum ódio viceja. Nenhuma umidade seca. Nenhuma sede cede. As tempestades não inquietam nele ventos, as avalanches não podem soterrá-lo, a perplexidade não o paralisa, o mal não o ameaça e o bem não faz com que se demore. Mais eis que um acontecimento, um único acontecimento, captura o tempo e o aprisiona.”

Véspera.

Nesta semana, Carla Madeira marcou presença no 1º Festival Literário Internacional de Petrópolis, o Flipetrópolis, participando de conversas potentes tal qual sua literatura, ao lado de outros grandes nomes da cena literária nacional, como Eliana Alves Cruz, Paulo Scott, Jeferson Tenório e Nádia Gotlib. 

Foto: @alnereis/Flipetrópolis

Em entrevista exclusiva à Tribuna de Petrópolis, no hotel onde está hospedada, no Centro Histórico, Carla Madeira contou detalhes sobre sua relação com Belo Horizonte, suas vivências e o seu processo de escrita literária, além de suas impressões na ocasião de sua primeira visita à cidade de Petrópolis.

Carla, qual é a sua história e relação com a cidade de Belo Horizonte? O que mais aprecia na sua cidade natal? Diria que a sua cidade influenciou, de alguma maneira, o seu processo de escrita literária? 

“Eu acho que tudo que a gente vive de alguma forma influencia. Talvez eu seja uma das primeiras gerações que viveu em Belo Horizonte porque nasceu lá. Então, por exemplo, meu pai veio do interior; minha mãe também. Lembro de quando eu era estudante e fazia cursinho numa sala com mais de 100 pessoas, o professor perguntou: quem aqui tem pais que nasceram em Belo Horizonte? E ninguém levantou a mão. Acho que ao mesmo tempo em que eu cresci em Belo Horizonte, eu tenho uma sonoridade do interior, de ter os pais, os avós e a família morando no interior. Isso foi durante muito tempo uma característica de Belo Horizonte, pelo menos no meu circuito, sabe?”

Você largou um curso de Matemática e se formou em Jornalismo e Publicidade. Além disso, foi professora de redação publicitária na Universidade Federal de Minas Gerais, e tem uma agência de publicidade – a Lápis Raro. Como todas essas vivências convergem para quem hoje é a Carla Madeira, uma das autoras mais lidas no Brasil? 

“Acho que a matemática, de certa forma, está presente em quase tudo, mas isso é muito diferente quando você estuda a matéria de forma exata e a fundo, e não sua aplicação. Porque na música e em tudo o que você faz, você aplica matemática, o pensamento lógico. Mas quando você estuda matemática pura, é completamente diferente, pois é uma linguagem, um sistema, um modo de operar. Então, de certa maneira, tive a sensação de que isso me afastava da palavra, do poético, da subjetividade; a matemática com sua lógica, seu mecanismo, aquela coisa da total previsibilidade, enquanto a subjetividade está em um território de dúvida e exploração. Assim, eu, que já compunha, não conseguia criar, não conseguia compor, fui me entristecendo nesse lugar da perda de uma certa linguagem para expressar minha subjetividade.”

Então o seu processo de escrita literária nasceu de uma angústia?

“Sempre, acho que sempre.”

Seus livros ‘Tudo é Rio’ (2014), ‘A Natureza da Mordida’ (2018) e ‘Véspera’ (2021) despertam múltiplas sensações no leitor, mas sobretudo a de estar lendo algo muito potente. A gente sente fisicamente essas sensações, se espanta, se emociona, fecha o livro para pensar, abre de novo, como se tivesse ali diante de personagens que conhecemos… sobretudo, porque eles são muito bem delineados. O lado humano é vívido, o aspecto contraditório e a complexidade do ser humano. Como você fez para dar vida a personagens tão potentes?

“O processo criativo é muito fragmentado. Não o dominamos completamente. Não há um roteiro e não se desenvolve da mesma maneira sempre, mas se eu tivesse que escolher uma coisa do processo, quando estou escrevendo, sinto-me uma pessoa que escuta. É um processo de escuta, não só desses personagens que estão nascendo, mas também de observar uma certa plasticidade no sentido de que se esse personagem faz isso, então ele é algo que tem a ver com esse fazer. E se ele faz isso, ele não pode fazer aquilo, porque senão será um personagem inconsistente. Assim, tento ouvir essas coisas e aquilo que está ao meu redor: as pessoas, as situações, as cenas banais, tudo se torna parte desse momento de escrita. E assim vou construindo. Há muito do inconsciente também, sabe, Aghata? Não o dominamos, ainda bem, pois acredito que essa seja a riqueza da literatura: as camadas de inconsciente. Coisas que as pessoas que leram me disseram e só então percebi que estavam lá. Ou memórias que não me lembro ativamente enquanto escrevo, mas que depois vêm à tona, e eu penso: ‘Poxa, acho que essa situação que escrevi tem a ver com algo que vivi há muito tempo atrás’. Então, o inconsciente vai trabalhando…A Natureza da Mordida aborda isso de forma mais explícita, enquanto nas outras histórias essa questão permeia o enredo. A Natureza se dedica a refletir um pouco mais sobre isso em relação à Biá, que é uma psicanalista e, ao mesmo tempo, está sofrendo de demência. Então, há essa questão do que lembramos, do que não esquecemos, e como essa dinâmica se desenrola em nossas vidas.”

A história de Dalva e Venâncio [Tudo é Rio] é uma história muito forte, de dor, de angústias diversas, de violência e de amor. Assistindo a uma das suas entrevistas, me lembro de você dizendo que não “deu conta” do processo de violência, inicialmente, em “Tudo é Rio”. Você escreveu e deixou lá, esperando para voltar quando fosse capaz de lidar com aquilo. Como foi retornar para essa narrativa? E em qual momento você percebeu que “estava pronta” para isso? 

“Eu parei por 14 anos, fui ser mãe, tive meus filhos, meu segundo casamento, o meu retorno não foi uma decisão. Eu nem sabia que eu ia escrever o livro. De repente, abri aquele arquivo que estava abandonado há muito tempo e retomei a história, eliminei o que vinha antes. Falei, poxa, se isso me perturbou tanto, vou voltar. Voltei no capítulo 4, que é com uma palavra “Dor”, que foi uma espécie de ritual de retomada. E dali eu voltei para a escrita e fui gostando, porque aquilo que tinha se tornado um lugar que eu não queria estar, naquele outro momento que eu revisitei se tornou um lugar que eu já não podia deixar de estar. Nada é muito objetivo, sabe? É um colocar-se disponível para uma coisa que tá querendo acontecer, porque eu poderia ter interrompido. É tão frágil a linha entre ter feito e não ter feito, sabe? Foi uma experiência bem legal ter voltado!”

Como você enxerga o papel da literatura hoje, especialmente na formação dos jovens leitores e no retorno dos leitores de antes? Porque tem muita gente que diz que voltou a ler depois que você lançou “Tudo é Rio”…

“Bom, eu, como mãe, me esforcei muito para ter filhos leitores, e durante muito tempo eles não foram leitores. Eles retomaram a leitura mais tarde. Mas naquele primeiro momento como leitores, o desafio era sentir prazer em fazer aquilo. Depois, acho que todo mundo atravessa uma certa fase em que a leitura se torna obrigatória e você tem que ler coisas que você não escolheu, coisas que não têm muito a ver com você, e às vezes isso causa um afastamento. Acho que a força de encontrar um livro que te mobiliza no prazer, na reflexão, talvez numa certa compreensão de uma coisa sua, essas possibilidades te fisgam, te dizem ‘poxa, como é bom entrar numa outra história, é uma coisa potente’. Oliver Sacks fala que o nosso sistema nervoso não consegue distinguir a nossa experiência de um acontecimento real da nossa experiência com a ficção. É o mesmo corpo que sente, é o mesmo lugar que chora, que sente tensão, o mesmo lugar onde tudo isso acontece. Então a gente vê a força da Literatura quando a gente ouve isso. É um experimentar, viver uma coisa. É muito legal quando o leitor se encontra com essa potência e percebe a força da literatura. É muito forte. O cinema também é uma coisa maravilhosa, mas ele define um tanto de coisa. “Tudo é Rio” vai para o cinema, eu vou ver uma cara de Venâncio e muitas vezes não é aquilo que eu imaginei. Se eu digo que é uma pessoa muito bonita ou dura, forte, que me assusta, eu vou mobilizar dentro de mim o melhor da beleza, do assustar. E quando eu vejo isso concretamente, eu posso ter uma dissonância com o que é pra mim. Então a literatura entrega o máximo da experiência que às vezes uma outra linguagem não consegue entregar porque eu fico ali, com alguma coisa que é menos do que eu poderia imaginar.”

Quais dicas você daria para quem deseja seguir o caminho da escrita literária no Brasil?

“É uma soma de coisas. Desde o livro em si, de ter tido a sorte de alguém legal que leu o livro e fez acontecer. A Martha Medeiros, por exemplo, foi uma pessoa super importante na história de “Tudo é Rio” e, consequentemente, na minha história também. Ela fez uma coluna inteira na Revista Ela sobre o livro, muito positiva, muito generosa. Então, acho que há uma soma de forças. Por isso, a coisa mais importante é o processo criativo, porque o que vem depois… Quem escreve, porque quer fazer sucesso, vender, talvez possa se frustrar, mas se você escreve porque tem alguma coisa dentro de você que precisa encaminhar, uma angústia, o que vier depois não vai te roubar esse gozo do processo criativo. Então, primeiro: escreva, se jogue, vá fundo, tenha uma experiência artística de entrega e adesão. Depois você pode se movimentar de várias maneiras, pode conseguir, pode se frustrar, mas ninguém tira de você a experiência da criação.”

Você já tinha vindo a Petrópolis? O que está achando da cidade? Já visitou algum ponto turístico? Do que mais está gostando, além do Flipetrópolis? 

É a primeira vez em Petrópolis, estou adorando! Ainda não visitei nenhum ponto turístico, porque estou na correria, mas neste domingo vou fazer isso!

Sobre o Flipetrópolis

Com curadoria de Afonso Borges, Sérgio Abranches, Tom Farias, Gustavo Grandinetti e Leandro Garcia, o 1º Festival Literário Internacional de Petrópolis recebe diversos escritores locais, nacionais e internacionais, movimentando diferentes cenas da produção literária, além de fomentar a educação, o acesso à arte – em suas mais variadas formas – e a inclusão. O evento, que começou nessa quarta-feira (1º), segue até este domingo (05), com entrada gratuita e uma vasta programação para todas as idades. Para conferir a programação completa acesse o site oficial do evento.

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