O pensamento negativo em nossa história
Boa parte de quem aborda temas referentes à nossa História parece não se dar conta da carga de pensamento negativo de seus textos. São raras as vezes em que algum aspecto positivo tem vez. Em linhas gerais, está tudo errado desde os tempos coloniais até hoje. Nessa linha, podemos tomar como exemplo a matéria publicada em O Globo, de 24.7.2022, intitulada “E assim nasceu o centrão – Com pixulecos e beija-mão, há 220 anos nos corredores do poder”, de autoria do jornalista Marcelo Remigio. O pensamento negativo se faz presente no título em que mistura tempos históricos bem diferentes com os olhos do presente.
Dei tratos à bola, tentando entender essa fúria de desconstrução de nossa História. O apagão proposital de nossa memória nacional, em especial a do século XIX, foi obra da república. Saí, então, a pesquisar em profundidade o que, de fato, teria ocorrido. Os desacertos da república foram projetados para o passado, de modo que a visão que foi sendo estabelecida só tivesse espaço para o lado negativo, bem típico dos tempos ditos republicanos. Vamos aos fatos.
O autor da matéria nos informa que os vícios viriam desde a colônia sem se dar conta que, no início do século XIX, quando aqui chegou Dom João VI, a nossa renda per capita girava em torno de 60% da dos Estados Unidos, além de ter trazido com ele cerca de 200 milhões de cruzados, valor equivalente à metade do meio circulante português, levando de volta apenas 50 milhões.
Talvez tenha sido uma das maiores transferências de recursos financeiros (dinheiro vivo) do mundo daqueles tempos. É só consultar a História Econômica do Brasil, sexta edição, páginas 392-393, de Roberto Simonsen. Naquela época, o que ocorria nos EUA em matéria de corrupção, inclusive eleitoral, não era muito diferente do que teria ocorrido aqui. O número de eleitores, lá como cá, e na Inglaterra, era diminuto.
Seria ocioso listar os inúmeros benefícios para o Brasil com a vinda de Dom João VI e dos 13 anos em que aqui viveu. (Digite no Google “Como em 13 anos D. João VI reinventou o Brasil”, por Leonídio Paulo Ferreira). Ele deu musculatura ao país em termos de desenvolvimento socioeconômico, e ainda o preparou para a independência. Dom Pedro I teria dado o grito do Ypiranga “Independência ou Morte!”, como já foi dito. Mas essa visão ignora eventos em que Pedro I se portou com coragem e presença de espírito em diversas situações de conflito no período que precedeu a independência.
O autor se refere à cerimônia do Beija-Mão à época de Dom João VI como se fosse a predecessora do cercadinho em do Bolsonaro. Na verdade, era coisa de séculos que nos vinha de Portugal. (Havia mesmo a tradição das caminhadas dos reis portugueses pelas ruas [que o Lula hoje não faz] e, de repente, um popular saltava na frente do rei e gritava “Justiça!” para lhe pedir exatamente isto.) As audiências de D. João VI eram publicas e atendiam a todos: pretos, mulatos e brancos, e não apenas o andar de cima. Inclusive mandou que fossem plantadas árvores frutíferas em espaços públicos em benefício da população.
Mais adiante, o texto nos diz que “representantes do “Centrão do Império” logo ocuparam cargos estratégicos” ainda sob Pedro I. Convenientemente, é esquecida, no combate à corrupção, a lei de 15 de outubro de 1827, ainda no Primeiro Reinado, que era draconiana na responsabilização dos ministros, secretários de Estado e conselheiros por crimes contra a coisa pública. O poder moderador também não foi mencionado, em especial por jamais ter sido usado para oprimir o povo, mas sim, para dar combate aos desmandos do andar de cima. A insinuação do “toma-lá-dá-cá”, tão comum nas práticas corruptas da república, no caso do Beija-Mão, era muito mais do “toma lá”, em especial pelo número de pobres atendidos e por quem nos deixou um saldo positivo de 150 milhões de cruzados ao voltar para Portugal.
Mais adiante, o leitor é informado que os políticos do Império buscavam desviar a atenção da população dos assuntos negativos ao governo e à imagem de D. Pedro I. Sequer é mencionado o fato de que, como seu pai, nosso primeiro imperador, às 9 horas da manhã, às sextas feiras (e Pedro II, aos sábados, às 17 horas), recebia qualquer pessoa que quisesse falar com ele. Ou seja, Pedro I não tinha medo de falar com o povo sem marcar audiência prévia. De fato, no final, houve um desgaste de sua popularidade. Ele estava com a cabeça em Portugal para lutar contra o absolutismo de seu irmão, D. Miguel, que havia usurpado o trono de D. Maria II, sua filha. E venceu a guerra civil para que Portugal tivesse, como teve, uma monarca constitucional.
O texto cita o fato de Pedro II ter encomendado um quadro comemorativo da independência quando da chegada de Dom Pedro I a Santos, muito aplaudido pela população. O pintor François-René Moreaux nos mostra crianças, adultos e idosos exultantes. Afirmar que não havia negros no quadro não procede. É visível a figura de um negro muito próximo do cavalo em que D. Pedro I estava montado. Esse quadro também tentaria tornar invisíveis as revoltas populares havidas no tempo das Regências (1831-1840). Não esclarece que nenhuma delas, exceto uma, propunha libertar os escravos. E que era forte nelas aspirantes a futuros caudilhos, já abundantes nos países de língua espanhola, que só ocorreu entre nós, infelizmente, depois de 1889.
Outra parte da matéria tem como título “Para adversários de Pedro I, fakenews e controle da imprensa”. Logo abaixo, no corpo do texto, esclarece que “D. Pedro I teria tentado, sem sucesso, regular a imprensa”. Não foi ocaso. Cita ainda o caso de José Bonifácio, que virou desafeto de Pedro I por certo tempo, e que criou o jornal “O Tamayo” para criticar o imperador. Aqui também a liberdade de imprensa saiu vencedora. Por 67 anos, ao longo de todo o Império, ela se manteve. A censura se deu logo após o golpe de 1889, na chamada república da espada com Floriano Peixoto.
Tentar encaixar a monarquia nos desacertos da república é violentar os fatos.
Nota: Vídeo meu, “Corrupção: Já foi muito diferente”, gravado em 2018, mas que continua atual: