O povo e a longa noite republicana

Em 17 de setembro de 2007, publiquei no saudoso Jornal do Brasil (JB) um artigo intitulado “O cacoete gramatical”. Buscava entender os números medíocres do INAF – Índice Nacional de Alfabetização Funcional (INAF) que nos revelavam que, a rigor, só 27% da população brasileira poderiam ser consi-derados funcionalmente alfabetizados. Aquele tipo de individuo capaz de ler e entender, por exemplo, um manual de instruções, e ainda se expressar por escrito de modo articulado. Não obstante, o censo de 2010 nos dizia que cerca de 90% do contingente populacional acima de 10 anos já era alfabetizado.

Como explicar uma taxa de aproveitamento tão baixa nesse tipo de competência tão essencial às exigências da sociedade do conhecimento de que nos falava Peter Drucker Peter? Estamos em plena era do trabalhador do conhecimento em que 77% da riqueza produzida são explicados pelo capital intangível (capital humano e qualidade das instituições formais e informais) contra apenas 5% dos capitais naturais (recursos naturais) e 17% dos chamados capitais produtivos (bens de capital: máquinas e equipamentos).

Uma história ilustrativa dessa incapacidade de produzir gente equipada para a sociedade do conhecimento ocorreu com uma amiga empresária. Ela resolveu implantar em sua indústria a ISO 9000, um conjunto de normas que formam um modelo de gestão de qualidade em todo o processo produtivo e administrativo. Pois bem, em determinado momento, a implantação da ISO 9000 empacou. Somente bom tempo depois é que ela se deu conta de que a grande maioria de suas funcionárias era funcionalmente analfabeta, apesar de terem pelo menos oito anos de escolaridade. Teve de suspender a ISO 9000 por quase um ano para realfabetizá-las funcionalmente e só assim concluí-la com êxito. A tristeza é a baixa qualidade da educação pública. E a alegria é ver que pessoas já adultas, quando submetida a um ensino de qualidade, respondem à altura, desautorizando explicações racistas.

Na época em que estudei na Universidade da Pensilvânia (1977-1981), certa feita fui convidado por um professor americano a comemorar o Dia de Ação de Graças em sua casa. Segundo ele, a língua explicaria boa parte dos avanços de um povo face aos demais. Sua “teoria” não me convenceu. Anos depois, em me dei conta de que não é propriamente a língua de cada povo que faz a diferença, mas o modo como é ensinada. Observe uma aula de inglês num filme inglês ou americano. Os professores estão sempre debatendo um texto com os alunos, focados na análise e interpretação dos temas. Ou estão discutindo as redações feitas pelos alunos. Nada dessa coisa do conteúdo apanhando da forma gongórica sem substância.

Historicamente, no período republicano brasileiro, parece ter havido um desvio de rota intelectual na busca do conhecimento que nos levou a brutais perdas de tempo naquilo que deveria ser o foco de nossas preocupações para atingir o pleno desenvolvimento do País. E essa falta de rumo certo atingiu em cheio civis e militares. O positivismo do final do Império e em quase toda a república fez estragos monumentais, levando-nos a descaminhos de cunho autoritário que pouco ou nada nos ajudaram. Visão que continua a nos atazanar ainda hoje. Literalmente, um cacoete mental vicioso, não corporal, de perda de foco que nos levou a acumular decepções em série.

Pode parecer que estou exagerando, caro(a) leitor (a), mas a História nos ensina que não. Não estamos sozinhos nos desacertos. Basta lembrar do cavalo de pau que a antiga URSS e a China deram em suas economias para conseguirem crescer de modo sustentado fazendo uso das leis da economia de mercado tão bem expostas por Adam Smith. Ou relembrar do que eu disse no meu último artigo publicado sobre o excelente livro “A Moeda e a Lei – Uma história monetária brasileira – 1933-2013”, de autoria do ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco. Ele nos fornece um diagnóstico documentado desse desvio de comportamento mental com efeitos práticos desastrosos.

FHC, em artigo dominical, de 01.08.2021, relata suas leituras e de seus dois amigos falecidos, José Arthur Giannotti e Leôncio Martins Rodrigues, das obras de Marx por anos a fio. Pessoas inteligentes que eram, causa espécie a demora em se darem conta da canoa furada marxista. Estudar Adam Smith, com o mesmo empenho, lhes teria sido bem mais útil. A bem da verdade, FHC e os dois falecidos se distanciaram das receitas marxistas a tempo de não cometerem os mesmos erros de Costa e Silva e Geisel.

Costa e Silva, alertado por Roberto Campos sobre a importância de termos um Banco Central independente, livre de interferências políticas, respondeu-lhe: “O guardião da moeda sou eu!”. Geisel, por sua vez, ao ouvir a informação de Delfim Netto que lhe fora passada por Giscard d’Estaing sobre a explosão em breve dos preços do petróleo, foi curto e grosso: “Quem entende de petróleo sou eu”. Evidentemente, pelo que se seguiu depois, inflação e endividamento brutais do país, ambos pouco sabiam do que estavam falando. A velha síndro-me, desde 1889, de militares cuidando de assuntos estranhos à sua formação.

Os acontecimentos mais recentes entre Bolsonaro, cujos intuitos golpistas são evidentes, mas sem respaldo das Forças Armadas, e os demais poderes compõem mais um capítulo dessa vocação de incompetência republicana. Que mais um golpe não vai resolver nada é líquido e certo. Por outro lado, nossas instituições atuais estão longe de atender aos anseios legítimos da população. Numa escala de notas de 1 a 10, nem o STF (Judiciário), nem o congresso, nem mesmo o executivo federal, bem como governadores e prefeitos, se sairiam muito bem. Muito pelo contrário.

As últimas manifestações de empresários, professores, intelectuais, dentre outros setores da sociedade brasileira, em defesa das eleições em 2022 e da legalidade podem ser um bom começo para refundar o País, sem a tutela militar, em direção ao sonho interrompido de Dom Pedro II e da Princesa Isabel, com uma nova constituição capaz de servir a SM o Interesse Público.