O precipício da visão

05/02/2019 12:00

O artigo do ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, publicado em O Globo, de 27.1.2017, intitulado A Visão do Precipício, merece uma réplica. Registro, de antemão, meu respeito intelectual pelo autor, suas obras e realizações. Minha motivação é estimular o debate civilizado, tão pobre no País.

No primeiro e segundo parágrafos, ele menciona o esporte nacional da sistemática postergação, citando Câmara Cascudo: “o Brasil não tem problemas, apenas soluções adiadas.” Ao lembrarmos de nossa coleção de três décadas – 30 anos para acabar com a aprovação automática; outro tanto para votar a reforma da previdência, não aprovada em 1994 por um voto; e o mesmo período para pôr fim à inflação – não há o que discordar até aqui.

As discordâncias surgem nos dois parágrafos seguintes sobre a demora para aplicar a Lei Eusébio de Queiroz, que gerou a expressão “para inglês ver”. Os ingleses queriam nos obrigar a interromper subitamente o tráfico negreiro, e foram empurrados com a barriga até 1850. Na verdade, as razões inglesas se prendiam a outros interesses do Império Britânico, tanto que, no mesmíssimo período histórico, se deram as duas Guerras do Ópio, vencidas pela Inglaterra. O mercado do ópio alimentava o tesouro inglês com cerca de 1/6 de suas receitas! Onde as razões humanitárias para nos impor o fim do tráfico?

A questão da escravidão e interesse nacional, por exemplo, foi o pivô da Guerra de Secessão americana, num país que era uma república (!) e que levou mais de 100 anos, após o conflito, para conceder cidadania efetiva aos negros, humilhando-os inclusive via leis e segregação social execráveis. Nesse sentido, a lerdeza não foi só nossa. Lá, foi um processo vergonhoso de quebra da autoestima do negro. E que só se resolveu, de fato, por desobediência civil da população negra ao longo da década de 1960. 

Em seguida, o articulista afirma que a abolição em 1888 foi feita por oportunismo político. E bate de frente com fatos. A Princesa Isabel discordou do marido, que queria deixar a assinatura da lei para um pouco depois. Ela já tinha um longo histórico pessoal de luta contra a escravidão antes mesmo da Lei do Ventre Livre, de 1871, assinada por ela. Foi ainda mais fundo: forçou a troca do Presidente do Conselho de Ministros para aprovar a Lei Áurea. Se houve cálculo político, foi às avessas, pois acabou perdendo o trono. Quanto à indenização, a rigor, nunca houve. Tanto assim foi que os republicanos prometeram-na aos cafeicultores que jamais foram reembolsados.

O autor parece ignorar o fato de que somente cerca de 10% da população de origem africana ainda era escrava quando a Lei Áurea foi assinada. Prova evidente de que a princesa e o pai estavam se mexendo, e muito. Não foi apenas pelos efeitos da Lei do Ventre Livre. O número de cartas de alforria, concedidas ou compradas, foi bastante significativo como demonstram os estudos sobre o tema do Departamento de História da UFF, considerado o melhor do Brasil. E pelo permanente incentivo de ambos às alforrias em visitas país afora. Isabel chegou a dar cobertura a negros fugidos. 

Quanto ao lugar-comum de sermos o último país do Ocidente a acabar com a escravidão, o autor esquece dos países que só o fizeram em pleno século XX. Isso para não mencionar uma espécie de escravidão mental a que foram submetidos os negros nos EUA até meados do século passado com a abjeta doutrina do “iguais mas separados”, coisa que legalmente nunca houve no Brasil. Lá, houve escravidão absoluta baseada na simples cor da pele. Aqui, ela foi relativa, pois havia negros que tinham escravos.

Curiosamente, sendo ele economista, o ponto mais frágil do artigo foi o parágrafo em que aborda o crescimento da renda real per capita ao longo do Império. Toma o período que vai de 1820 a 1900, misturando alhos com bugalhos, para reforçar seu argumento de crescimento acumulado de apenas 5% em oito décadas. Ele incluiu no cálculo a primeira década republicana de 1890 como se fosse monárquica!

A primeira década republicana foi um desastre em termos de PIB e renda per capita. A república começou com uma década perdida. De 1980 para cá, colecionou mais quatro. Pesquisa recente, de 2013, de Tombolo, A. G & Sampaio, A. V., O PIB brasileiro nos séculos XIX e XX, nos informa que de 1820 a 1875, o PIB per capita cresceu 1,21% a.a., ou seja, praticamente dobrou no período. Causa estranheza tamanha discrepância, levando em conta ainda que, no acumulado da última década do Império, houve um aumento do PIB per capita de 17% e do PIB em 42%. 

No fecho, o autor falar em choque de capitalismo com a proclamação da república. Só se foi de capitalismo desastrado pelo acúmulo de falências e falcatruas resultantes do encilhamento de Rui Barbosa. Bem mais premonitório foi o presidente da Venezuela sobre o golpe de 15 de novembro: “Lá se foi a única república de fato que existia na América Latina”. A questão não é entre monarquia ou república, mas entre regimes que preservam o interesse público e os que não o conseguem. Nada mais res publicano do que a Inglaterra no trato da coisa pública. Nada menos, na dita república Patropi. 

Por fim, o lado qualitativo determinante, ignorado pelo articulista. Em 1889, o Brasil gozava de plena liberdade de imprensa, inflação média de 1% ao ano, voto distrital puro, parlamentarismo, dois partidos com programas e que votavam de acordo com eles, orçamento impositivo, respeito internacional, homens públicos respeitados e um processo de industrialização bem enca-minhado. Liberdade de imprensa e inflação baixa foram alcançadas. Os demais itens são carências que cultivamos até hoje, e que explicam o nó político-institucional que nos trava. 

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