O problema da educação pública sem qualidade

30/09/2023 08:00
Por Gastão Reis

No período que antecedeu o plebiscito de 1993, um amigo paulista me relatou o clima em relação à educação no interior do estado de São Paulo. Ele participava ativamente das visitas feitas a favor da monarquia parlamentar e do interesse dos príncipes brasileiros na educação de qualidade. A resposta que recebia é que se educassem o povo iriam perder o controle que tinham sobre os munícipes. Coisa de sentar no meio fio e chorar  lágrimas de esguicho, na bela  metáfora de Nelson Rodrigues.

Eu não resisti e lhe relembrei do que havia sido a educação no Rio de Janeiro nos tempos do Império, que ficava a cargo do governo central. E da explosão de escolas de boa qualidade sob a batuta de D. Pedro II. Saltaram de algumas poucas em 1844 para cerca de 7500, que abrigavam 115.000 alunos em 1889. Mais: naquela época os professores do ensino básico ganhavam o triplo, em termos reais, do que recebem hoje seus pares na dura lida de docentes desvalorizados social e financeiramente.

Como mais da metade da população de origem africana no Rio de Janeiro, por volta de 1860, já era livre, seus filhos tiveram acesso a escolas públicas de boa qualidade. Bem diferente dos EUA, nunca houve aqui a separação de raças. A literatura sobre educação de instituições internacionais enfatizam a importância do ensino básico de qualidade como fator de redução da desigualdade. Quem sabe ler, escrever e fazer conta com desenvoltura pode até se tornar autodidata. Ou seja, Pedro II estava com o faro certo.

Não obstante, existe pelo menos uma boa notícia: a revolução feita no estado do Ceará, em especial no município de Sobral. Ocorreu, lá no Nordeste, uma conjunção de fatores favoráveis a se levar a sério a questão da educação pública de qualidade. É fácil listá-los: gestão profissional das escolas; avaliação permanente do desempenho dos alunos; competição e colaboração entre as escolas; continuidade política; e ação conjunta entre escolas e secretarias de educação.

A remoção de diretores indicados politicamente foi uma batalha difícil, mas exitosa. Passou a ser pré-condição para os diretores realizarem curso de gestão escolar.  Quanto aos alunos, o acompanhamento regular de seu desempenho foi seguido à risca, de forma a corrigir desvios de rota a tempo. O item competição e colaboração entre as escolas é da maior relevância, pois permite medir, de um lado, o desempenho relativo das escolas, e, de outro, deixa aberta uma porta via cooperação para não deixar nenhuma para trás.

Mas o milagre mesmo foi a continuidade política em que a alternância dos governadores no poder estadual não permitiu que a sina da herança maldita tomasse corpo no Ceará. Houve uma concertação política no sentido de todos remarem na mesma direção sem interrupções tão comuns como desastrosas.

O caso do município de Sobral é emblemático. Em matéria publicada em O Globo, em 24.9.2023, sobre a revolução educacional ocorrida na cidade há quase 30 anos, as palavras do prefeito Ivo Gomes resumem bem  as razões do sucesso. Disse ele: “Estamos sempre estabelecendo metas. Temos mais de 30% dos alunos em tempo integral e queremos oferecer para toda a rede até o ano que vem (2024). Não tem gastos exorbitantes. Aplicamos esse método de avaliação, com gestão eficaz. O que acho importante para o resto do país é o profissionalismo. A política compromete a qualidade”.

Tamanha lucidez na gestão pública é rara. Traça um caminho para as demais prefeituras do país. E me lembra o que Roberto Campos disse sobre gastos com educação. Cito de memória: “No Brasil, não gastamos pouco com educação, mas gastamos absurdamente mal.” Deste pesadelo Sobral se livrou. 

É alvissareiro que esta lição de Sobral, no interior do Ceará, seja tão diferente do que ocorria no interior de São Paulo, o estado mais rico do país, no início da década de 1990 em que, visivelmente, a política comprometia a qualidade e a educação do povo. Mas os tempos mudaram e o interior de São Paulo parece seguir em outra direção bem mais positiva. Na verdade, ainda há muito o que fazer em matéria de educação pública de qualidade e escolas em tempo integral quando pensamos no Brasil como um todo.

Ainda relembrando as lições deixadas por Roberto Campos, cabe citar uma tirada dele sobre as estatais, motivo de sonhos macabros de reestatização de Lula em pleno século XXI: “O ideal das estatais brasileiras é reformular a doutrina de Abraham Lincoln: não o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, e sim dos funcionários, pelos funcionários, para os funcionários”. Basta substituir as palavras “estatais brasileiras” por “políticos brasileiros”, que a frase de Campos continuaria válida com a aprovação dele.    

Na atual quadra brasileira, e para evitar um tom fatalista no fecho deste artigo, cabe ressaltar as preocupações e medidas efetivas em direção à qualidade e ao tempo integral nas escolas propostas em seminários e debates. Elas parecem estar adquirindo massa crítica.  Pesou também certa vergonha em relação ao Ceará, que está longe de ser o estado mais rico da federação.

O jornal O Globo, em 26.9.2023, publicou uma matéria intitulada “Diálogos RJ: Escola integral é desafio para o país”. Já houve avanços. No estado do Rio de Janeiro, 30,2% dos alunos estão em tempo integral contra 20,4% no país como um todo. O horário integral em Pernambuco, por exemplo, propiciou também a redução das mortes violentas de jovens.

Mas me pareceu um equívoco, na reforma do ensino médio, a ideia, em princípio correta, de focar mais nas matérias orientadas para a formação profissional dos alunos, como diz a matéria, em detrimento de disciplinas como português e matemática. Estas jamais deveriam ser sacrificadas, pois ter pleno domínio de leitura, redação e capacidade de fazer contas são condições básicas para entender e dominar as matérias de sua formação profissional. Melhor reduzir ou cortar a carga horária de outras que não sejam essenciais. 

Em suma, há indícios de que o futuro será melhor em matéria de educação pública de qualidade em tempo integral. A conferir.

“Dois Minutos com Gastão Reis: Um prefeito nota mil e o Barão”.

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