O silêncio
O que houve? O que ouve? A vitória do silêncio está garantida. Com o passar do tempo, mergulhamos nele para sempre. Por isso, temos que exercitá-lo continuamente. Aprender a ouvir é um exercício que nos leva a silenciar. A “escuta ativa” requer uma atenção voltada para o outro. O falar é um vazamento. Há os que andam com a mente e o coração vazando. Para mim, isso é um estado de espírito. A meu ver, quem fala é a alma. As nossas vísceras apenas fazem parte de um corpo que vejo como instrumento. Elas não se manifestam espontaneamente sem um comando. Elas formam o corpo. O ânimo, a alma, é que põe esse organismo em movimento. Há os que animam bem e há os que animam mal. Há os que animam para o bem, como há os que animam para o mal…
Ainda carrego, desde a infância, aqueles conceitos que aprendemos, nos primeiros anos do Ciclo Básico, sobre seres animados e inanimados. Hoje os vejo com mais consistência pela dialética imposta pela vida. Basta olhar para os corações de pedra para entender que há vivos mortos e mortos vivos.
A alma quando fica inerte é que nos traz a sensação de “desânimo”. Por isso que o amor é a mola propulsora do viver. Ele “anima”. Essa “animação” não pode ser confundida com ansiedade.
Não fiz nenhum estudo específico, mas me atrevo a afirmar que o ato de amar é antidepressivo e combate a anedonia, que consiste na perda da capacidade de sentir prazer na execução de atividades que antes eram consideradas agradáveis.
Quando me deparo com o frenetismo das buzinas, com as acelerações das motos, com a pressa movida pela ansiedade, penso na aridez do amor presente na convivência urbana, que hoje se encontra repleta de intransigências. A resiliência que favorece o diálogo anda em falta. A violência no trânsito é uma das consequências dessa impaciência. Se houvesse um pouco mais de tolerância, certamente o número de crimes por motivos fúteis, torpes seriam menores.
Ainda me choca a barbárie nossa de cada dia:
– Como um homem de 38 anos mata um idoso de 77 anos em uma discussão no trânsito?
Necessitamos do desafio de conhecer o outro até mesmo para exercitar o amor nas suas diversas faces, principalmente no que se refere à fraternidade, pois esta é que consolida as amizades. Não é o instinto que nos leva a amar, a perdoar, há algo além: o homem deseja expandir-se. E isso ocorre na doação. O doar-se é fazer-se presente no outro. Zygmunt Bauman no livro “Amor Líquido”, no capítulo “Sobre a dificuldade de amar o próximo”, afirmara:
“Aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade. Todas as outras rotinas da coabitação humana, assim como suas ordens pré-estabelecidas ou retrospectivamente descobertas, são apenas uma lista (sempre incompleta) de notas de rodapé a esse preceito. Se ele fosse ignorado ou abandonado, não haveria ninguém para fazer essa lista ou refletir sobre sua incompletude.
Amar o próximo pode exigir um salto de fé. O resultado, porém, é o ato fundador da humanidade. Também é a passagem decisiva do instinto de sobrevivência para a moralidade.
Essa passagem torna a moralidade uma parte, talvez condição sine qua non, da sobrevivência. Com esse ingrediente, a sobrevivência de um ser humano se torna a sobrevivência da humanidade no humano.
‘Amar o próximo como a si mesmo’ coloca o amor-próprio como um dado indiscutível, como algo que sempre esteve ali. O amor-próprio é uma questão de sobrevivência.”
As relações afetivas, às vezes, são minadas pelas conveniências. As amizades, às vezes, estão maquiadas pelos interesses. A fraternidade, às vezes, é travada pelo egoísmo. Mas tenho como certeza que a essência nunca será superada pelas aparências. Os fingimentos, como a mentira, têm pernas curtas…
No livro “Elogio da Loucura”, de Erasmo de Roterdam, encontramos as seguintes indagações:
“Dizei-me por obséquio: um homem que odeia a si mesmo poderá, acaso, amar alguém? Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso, concordar com outro? Será capaz de inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição e o tédio? Só um louco, mais louco ainda do que a própria Loucura, admitireis que possa sustentar a afirmativa de tal opinião. Ora, se me excluirdes da sociedade, não só o homem se tornará intolerável ao homem, como também, toda vez que olhar para dentro de si, não poderá deixar de experimentar o desgosto de ser o que é, de se achar aos próprios olhos, imundo e disforme, e, por conseguinte, de odiar a si mesmo.”
– Quem ouve o silêncio?…