O velho e cansado desarranjo institucional do Patropi

06/jan 08:00
Por Gastão Reis

Os ossos do ofício estão presentes nas diversas profissões. Os economistas, minha tribo, são acusados de fazer uso excessivo de suposições, nem sempre razoáveis, antes de emitir uma opinião. Médicos são denunciados por cometer más práticas, que podem levar à morte. Jornalistas acabam se dobrando à asfixiante presença do hoje em suas análises, sem fazer contrapontos no ontem, onde reside a sabedoria romana da “Historia magistra vitae” (História mestra da vida). Esta longa tradição vem sendo negada, como na obra de Reinhart Koselleck, que quer ver na História uma totalidade em que ela seria uma desbravadora do futuro. Por mais elaborado que seja esse tipo de enfoque, parece a defesa da árvore sem raízes. Um despropósito.

O caso brasileiro é emblemático. Sem essa visão do que foi o passado brasileiro até 1889, caímos naquele triste espetáculo de reinventores da roda. Não é preciso ir muito longe para ilustrar os desvios de rota que a história, com “h” minúsculo, pode tomar. Nazismo e stalinismo são dois exemplos relativamente recentes dos estragos que o futuro pode trazer na ilusão do construir o paraíso na terra. Acabaram em pesadelos assustadores e lições perenes para a Humanidade ao esquecer os pilares da civilização ocidental. Segundo Bento XVI, a filosfia grega, o direito romano e a moral judaico-cristã.

Em dois artigos bem recentes, Merval Pereira aborda a questão da disfuncionalidade do presidencialismo. No primeiro, “Lá como cá”, em 2.1.2024, ele nos diz que “Milei e Lula provam a decadência do presidencialismo”. No segundo, “Pós-Lula”, em 4.1.2024, bate mais duro ainda, e nos informa que “Vivemos o que parece ser o epílogo do presidencialismo de coalizão, que perdeu a eficácia e a funcionalidade”. A expressão “presidencialismo de coalizão”, criada pelo cientista político Sergio Abranches, busca entender nossa esquizofrenia política, Teria dado certo com FHC por sua habilidade e o fato de termos então apenas três partidos de peso no Congresso.

Ponha-se no lugar de um europeu, ou mesmo de uma americano bem informado, e eles certamente vão lhe dizer que não gostariam de viver sob um regime político como o presidencialismo do tipo latino-americano. E por razões óbvias. Sabedores do pífio grau  de controle que os eleitores têm de seus representantes entre as eleições, eles preferem manter distância de um arranjo institucional tão disfuncional e ineficaz, para usar as palavras do Merval.

As falhas são gritantes quando pensamos nos presidentes medíocres e corruptos que tivemos desde 1985, com a saída dos militares.  Pior: até Sarney, para não mencionar Roberto Campos, disse que o país seria ingovernável com a Carta de 1988. A rigor, o problema não é bem Milei e Lula, mas o próprio presidencialismo. Um país ingovernável é, por definição, um país mal governado. A prova do crime está na coleção de décadas perdidas que o País vem acumulando, em maior ou menor grau, desde 1980.

Mas o cerne da questão é outro. Não era difícil prever o que iria acontecer dado o amadorismo com que foi montado o arcabouço político-institucional de 1988. Uma Carta que mistura legislação constitucional com ordinária, em especial no nível ocorrido, vai tender para um desfecho político da pior espécie. Ordinário mesmo, no que a palavra tem de pior. A dupla recusa do povo chileno em mexer na constituição legada por Pinochet, ainda que em princípio quisesse, foi justamente o de ter sido sábio o suficiente para não abrir espaço para algo parecido com a nossa de 1988.

A despeito das reticências que mantemos em fazer previsões, existem aquelas são fáceis de antever. Exemplos abundam. Tabelamentos de preços, que dão errado desde os tempo de Hamurabi e do Império Romano. Excesso de intervenção do governo na economia, que acabou com a Argentina em seu declínio ao longo de mais de meio século, que Milei tenta reverter. Nós mesmos, com o grau de corrupção e ineficiência nas estatais cuja vida foi muito além da necessária, com os generais fazendo a alegria da esquerda. E assim por diante.   

Alguns sintomas dos estertores do presidencialismo de colisão (não escrevi coalizão) vieram  à tona ao longo de 2023. O primeiro deles é o evidente  conflito entre poderes, que vem se acentuando. Executivo contra o Legislativo, este contra o Judiciário, e sem ter uma válvula de escape como nos governos de gabinete, onde é possível dissolver o Parlamento e convocar imediatamente novas eleições.

A esquizofrenia presidencialista latino-americano permite a chegada ao poder de presidentes que não têm maioria no Congresso. Para consegui-la, entra em ação a moeda da corrupção, que pesa como chumbo no bolso do povo. E aí se estabelece um conflito de legitimidade. O programa do presidente eleito, sancionado pela vontade popular nas urnas, não é, necessariamente, o dos partidos que dominam o Parlamento. A rigor, é possível questionar a legitimidade do próprio Congresso, que se esquiva de respaldar a vontade popular. Pode até não ficar bem tocar no assunto, mas é preciso.

Aqui está o cerne da questão que levou o colunista Merval Pereira a se dar  conta de que estamos diante de um sistema político que “perdeu a eficácia e a funcionalidade”. Situação esquizofrênica, que carregamos nas costas desde 1889. Portugal, por exemplo, em seus altos baixos ao longo da História, nunca abandonou o parlamentarismo e o princípio de que os poderes são interdependentes. Jamais acreditou nessa contradição em termos do “independentes e harmônicos”. A realidade brasileira comprovou que não são. E já faz tempo demais.

Tem relevância que um colunista como Merval Pereira diga claramente que o rei republicano (se é que isto existe…) está nu. Ou seja, o velho e cansado presidencialismo da variedade latino-americana está fazendo água por todos os lados. Tarda a hora de buscarmos alternativas. E nós temos a possibilidade do parlamentarismo com monarquia. Por que não?

“Dois Minutos com Gastão Reis: Economia Esquizofrênica”. 

Últimas