Ode ao acaso, ‘Golpe de Sorte em Paris’ é comédia com gosto amargo

20/set 07:01
Por Gabriel Zorzetto / Estadão

Woody Allen é um dos cineastas mais prolíferos das últimas décadas. Golpe de Sorte em Paris, com lançamento nos cinemas brasileiros nesta semana, é seu 50º filme e o primeiro deles a ser gravado integralmente em francês.

Desde que sofreu acusações de abuso sexual de sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow, o diretor foi “cancelado” em Hollywood, mesmo sem nunca ter sido indiciado, e teve dificuldades para encontrar financiamento nos EUA.

Dessa forma, voltou a fazer filmes na Europa, continente que fora pano de fundo da boa trilogia inglesa – Match Point (2005), Scoop (2006) e O Sonho de Cassandra (2007) -; do mediano Para Roma com Amor (2012); dos premiados Vicky Cristina Barcelona (2008) e Meia-Noite em Paris (2011); e do mais recente O Festival do Amor (2020).

O novo longa, ao contrário de Meia-Noite em Paris, não se interessa em romantizar o charme da capital francesa. O foco está, sim, na história atraente, encarnada pelo ótimo elenco local, que poderia facilmente ter sido rodada em Nova York, cidade “musa” do maior cronista vivo da metrópole americana.

O enredo gira em torno de um triângulo amoroso. Fanny (Lou de Laâge) trabalha numa requintada galeria de arte e vive em um suntuoso apartamento com seu marido Jean (Melvil Poupaud). Mas ela começa a questionar o casamento aparentemente perfeito quando reencontra nas ruas parisienses o ex-colega de escola Alain (Niels Schneider), escritor que revela sempre ter tido uma quedinha pela moça.

O esbarro ocasional com o rapaz é apenas o pontapé da sucessão de coincidências que virão a seguir. Essa ode ao acaso, inclusive, permeia toda a obra de Woody Allen, ateu confesso, cínico e neurótico. Para ele, a sorte está acima do talento e quem orquestra os acontecimentos da vida não é nenhum tipo de Deus, mas sim a aleatoriedade.

O tema já fora pincelado em Crimes e Pecados (1989) e explorado magistralmente no já citado Match Point, duas referências claras para Golpe de Sorte, ainda que este seja bem mais leve que os anteriores. Leveza que permeia a direção de Allen e a fotografia de Gordon Willis, majoritariamente, mas que esvanece no ato final com reviravoltas dignas das tragédias do cinema francês.

Jean, milionário coach de investimentos de passado nebuloso, revela seu lado ciumento. Ele gosta de exibir a “esposa-troféu” e faz de tudo para preservar o relacionamento, enquanto Fanny – cuja beleza e os olhos expressivos lembram a brasileira Maria Bopp – se divide entre os dois amores e ouve os conselhos da mãe (Valérie Lemercier).

Nenhum cineasta explorou a complexidade dos relacionamentos amorosos como Woody Allen. Aqui, tópicos como fidelidade, ciúmes e o casamento moderno voltam a ser investigados. Não com a destreza de clássicos como Annie Hall (1977), Manhattan (1979) ou Hannah e Suas Irmãs (1986), mas com o mesmo olhar sábio por trás das lentes obsessivas do autor.

No fim das contas, Golpe de Sorte em Paris é uma saborosa comédia romântica, com toque amargo, que diverte e surpreende. Dá para afirmar, com segurança, que se trata do melhor trabalho do diretor desde Blue Jasmine (2013).

E, ao que tudo indica, será o último filme do mestre de 88 anos, que disse em entrevista ao Estadão estar “cansado” de correr atrás de financiamento para seus projetos. Uma pena, pois o mundo precisa de Woody Allen.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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