Ódio, câmeras, ação: cineasta afegão vai a Ruanda para entender violência

19/01/2023 08:43
Por Luiz Carlos Merten, especial para o Estadão / Estadão

Atiq Rahimi é um escritor e também um cineasta afegão de filmes como Terra e Cinzas e A Pedra da Paciência. Assina o longa Nossa Senhora do Nilo, em cartaz nos cinemas brasileiros. O genocídio de Ruanda já foi tema de filmes fortes. Terry George conquistou o público e a crítica com Hotel Ruanda, lançado em 2004. Rahimi dá agora sua contribuição, o seu olhar.

“Havia lido o livro de Scholastique Mukasonga quando saiu na França, e foi premiado, em 2012 (no Brasil, foi lançado pela Nós). Fiquei impactado. Mas nunca pensei que poderia um dia adaptá-lo”, explica. E acrescenta: “O genocídio de Ruanda ocorreu entre 1990 e 94. Naquele momento, havia a guerra civil na antiga Iugoslávia e uma outra em curso no Afeganistão, onde nasci”.

E o cineasta acrescenta: “No meu imaginário, essas três guerras não eram somente manifestações de horror, com destruição e morte, mas também se ligavam umas às outras porque as questões culturais e religiosas eram essenciais em todas”.

Motivada por disputas étnicas entre hutus e tutsis, a guerra civil de Ruanda resultou em um genocídio que levou à morte cerca de 800 mil integrantes do segundo grupo. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a região foi entregue aos belgas, que ampliaram o abismo entre as etnias dominantes em Ruanda ao delegar privilégios aos tutsis, que seriam, pelo darwinismo social em voga, naqueles tempos, “naturalmente superiores”.

Quando o produtor Rani Massalha lhe propôs o filme, Rahimi (cuja obra literária tem sido publicada no Brasil pela editora Estação Liberdade) imediatamente disse sim, mas internamente ele tinha suas dúvidas.

“Não queria fazer mais um filme sobre a violência da guerra, mas pensei em usar o livro de Scholastique para entender as origens daquele conflito. Como a diferença e o ódio ao outro podem alimentar e intensificar o horror. Para chegar às origens, eu sentia que precisava conhecer mais o país, sua cultura, sua gente. Foi o que fiz”, concluiu.

Entorno social

Quer dizer que Rahimi filmou in loco? “Oh, sim, não conseguiria fazer o filme com o grau de honestidade e sinceridade que queria sem me impregnar da verdade local. Aquelas montanhas dizem muito sobre o próprio temperamento das pessoas. Fui documentarista, antes de me tornar diretor de ficção. Valorizo muito a paisagem, o entorno social. Nossa Senhora do Nilo nasceu com essa preocupação. Com meu fotógrafo, Thiérry Arbogast, quis criar imagens bonitas, de sonho, mas de tal forma que esse sonho, de repente, começa a virar pesadelo.”

O filme traz como cenário principal o colégio interno católico que lhe dá nome. Situado no alto de uma colina, ele permite que meninas da elite de Ruanda vivam isoladas, desconhecendo a violenta crise que se desenvolve no país.

Havia um motivo mais pessoal para que Rahimi investigasse as raízes do ódio. “Meu irmão foi morto na Guerra do Afeganistão, e isso teve um efeito devastador para mim. Creio que todas as histórias de opressão e luta que tenho contado visam preencher esse vazio, essa dor. Eu amava meu irmão.”

Garotas

O filme traz um conhecido ator francês – Pascal Gregory – numa participação importante. Como foi feita a seleção do elenco? “Foi feita localmente, e não foi fácil. Precisava de garotas de uma certa idade, entre 16 e 20 anos, que falassem francês e pudessem ser preparadas para atuar na língua. A herança colonial deixou cicatrizes profundas. Os belgas incentivaram as disputas étnicas e fizeram com que o francês terminasse rejeitado em Ruanda em favor do inglês.”

E Rahimi prossegue: “Minha filha ajudou muito no processo. Ela tinha a idade certa e se aproximou das garotas, sendo, ao mesmo tempo, preparadora e amiga”. No começo, as garotas vestem branco. “O tema do filme é a corrupção da inocência”, resume o diretor, premiado no Festival de Berlim de 2020 com o Urso de Cristal da mostra Generation 14plus.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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