10/nov 08:00
Por Ataualpa A. P. Filho

O tal do “friozinho na barriga” ocorre até nos profissionais mais experientes, quando veem o trabalho realizado sendo aferido. Experientes atores e atrizes sempre falam das expectativas que antecedem as estreias dos espetáculos. Bailarinas e bailarinos, mesmo depois de exaustivos ensaios, sempre externam as inseguranças das primeiras apresentações.

No palco, como na vida, há riscos. Mas o medo de errar não pode superar o desejo de criar. Quem perde esse “friozinho na barriga” é quem se congela na monotonia das repetições e não mais se aventura em busca do novo.

Há mais de três décadas, trabalho em preparação para concursos, vestibulares, exames de seleção em que a produção textual e os conhecimentos sobre a Língua Portuguesa são exigidos. Essas provas enfatizam a modalidade formal da língua, ou seja, há um padrão normativo a ser obedecido com base nas regras gramaticais.

A Língua possui regras, mas não é engessada. A resiliência dela permite diversas variações que não dependem do grau de instrução do falante. Não há sociedade sem linguagem.

Sinto-me um operário da Língua. Acordo cinco horas da manhã, como qualquer outro trabalhador, para fazer um texto. As responsabilidades, os compromissos nos conduzem ao aprimoramento do que executamos. Amo a Linguagem; é meu ganha-pão. A Palavra é uma ferramenta de trabalho.

Na sexta-feira passada (01/11), saí de casa com o tal “friozinho na barriga”, que sempre me atormenta nas vésperas dos exames: “no domingo é a prova do Enem. O que devo revisar? O que ficou faltando trabalhar? Qual será o tema da Redação? Quais os assuntos que serão explorados na prova?…”

Sempre surge uma autocrítica diante do trabalho que se realiza. É a eterna cobrança interior em busca do aprimoramento profissional.

Diante da importância da Redação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), resolvi fazer algumas recomendações, assim como os pais fazem quando os filhos saem, à noite, para as festas: “cuidado com o internetês, uma dissertação-argumentativa não é conversa de aplicativo. Não abrevie as palavras. Leia o texto antes de entregar, lembre-se das vírgulas, dos acentos. Veja a objetividade dos parágrafos. Cuidado com a coerência e a coesão. Use os operadores argumentativos adequados para manter a sequência lógica das ideias…”

Foi com esse desejo de pontuar os assuntos importantes, que escrevi a palavra “coisa” no quadro e falei: “não use esta palavra com sentido vago. Use os termos específicos dentro do assunto abordado…”

E assim fui tentando nortear um projeto de texto, com uma proposta de intervenção coerente, com um olhar sobre a nossa realidade, na diretriz do respeito aos direitos humanos.

Na noite de domingo (03/11), quando o caderno de questões foi divulgado, li as questões referentes a “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Eis que me deparo com a palavra “coisa” na questão 33 da prova verde, no texto da escritora Tati Bernardi, abordando a “coisa” nas canções de Caetano Veloso. Lembrei-me do que havia falado na sexta-feira, pronunciei baixinho: “que coisa!…”

O comando da referida questão está exatamente voltado para os recursos utilizados na progressão textual. E a palavra “coisa”, principalmente na linguagem oral, é empregada com diversas significações, substituindo outros vocábulos com sentidos mais específicos, mais adequados ao contexto do assunto abordado.

E aqui sigo por uma corrente do pensamento popular: “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Em se tratando da Norma Gramatical, há regras que devem ser seguidas no uso dos operadores argumentativos, na condução do raciocínio lógico. Contudo, a expressividade literária cria ambientes linguísticos que levam a Marte: “ô coisinha tão bonitinha do pai”. A canção de Jorge Aragão, Almir Guineto e Luís Carlos “Coisinha do Pai” foi levada a Marte, em 1997, para acordar o robô Sojouner, que integrava uma missão da Agência Espacial dos Estados Unidos (Nasa). Isso prova que a “coisa” vai longe. A “Garota de Ipanema” é a “coisa mais linda/ mais cheia de graça”, na canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

– Atire a primeira crítica quem nunca coisou. Tati Bernardi foi bem explícita: “sempre passo nervoso quando leio minha crônica neste jornal e percebo que escapuliu a palavra ‘coisa’ em alguma frase.”

Fiquei feliz, quando li a questão 45 da citada prova. Vi uma homenagem ao mestre Evanildo Bechara, por quem tenho uma grande admiração. Ele é um dos responsáveis por este amor que tenho pela Palavra. A Gramática do Bechara é uma bíblia…

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