Orçamento secreto é inconstitucional, diz análise do TCU
Depois de examinar as explicações do governo sobre o chamado orçamento secreto, a área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o mecanismo usado para distribuir bilhões de reais das emendas de relator-geral do orçamento é incompatível com a Constituição. Um relatório dos auditores obtido pelo Estadão apontou falta de transparência, critérios e equidade na lógica de atender ofícios de deputados e senadores no repasse dos recursos. E conclui que “a realidade identificada não reflete os princípios constitucionais, as regras de transparência e a noção de accountability.”
A avaliação consta em um dos capítulos da análise feita sobre a prestação de contas da Presidência da República no exercício de 2020, que será julgada na próxima quarta-feira, dia 30. Nos últimos dias, os auditores se debruçaram sobre um lote de documentos enviados pelo Palácio do Planalto e pelos ministérios ao tribunal para justificar a distribuição de emendas de relator a parlamentares da base aliada.
A conclusão derruba o discurso do governo de que o direcionamento dos recursos das emendas de relator não foi sigiloso. “Nesse cenário de ausência de divulgação dos critérios objetivos e de instrumento centralizado de monitoramento das demandas voltadas para a distribuição das emendas de relator-geral (RP-9), fica comprometida a transparência da alocação de montante expressivo do orçamento da União”, diz o tribunal. Os técnicos da Secretaria de Macroavaliação Governamental (Semag) do TCU também apontaram uma dificuldade do Planalto de demonstrar critérios técnicos no repasse do dinheiro, e a ausência do princípio da equidade, que deve “permear a distribuição de emendas parlamentares”.
Como o Estadão revelou, parlamentares aliados indicaram transferências em valores superiores àqueles aos quais têm direito pelas tradicionais emendas ao orçamento – as individuais e as de bancada. As indicações, definidas nos bastidores, foram formalizadas por meio de ofícios ocultos ao público.
A reportagem apurou que há uma tendência de o tribunal não reprovar as contas de 2020 no julgamento, mas a Corte deve recomendar formalmente à Presidência que dê ampla publicidade às informações sobre quais são os reais solicitantes dos repasses listados como de autoria do relator-geral do orçamento. Para os técnicos do TCU, esses documentos devem estar disponíveis na internet.
Em um dos papéis enviados pelo governo ao TCU, a Secretaria de Orçamento Federal (SOF), do Ministério da Economia, afirma que não participou do processo decisório sobre a atual sistemática de distribuição dos recursos provenientes de emendas RP-9. “No que tange aos critérios de distribuição, sob a forma de transferência voluntária, das programações provenientes das emendas de relator-geral, a SOF alegou que, por não ‘constar no rol de suas competências’, o órgão ‘não teve participação em suas eventuais definições e sobre eles não têm informações'”, destacou a equipe técnica do TCU.
“As informações extraídas das respostas às diligências expõem a inexistência de procedimentos sistematizados para o monitoramento e avaliação dos critérios de distribuição de emendas RP-9, tal como ocorre, por exemplo, com as emendas individuais por meio do Siop (Sistema de Planejamento e Orçamento do Governo Federal)”, conclui o documento.
A análise do TCU também aponta que o governo não apresentou evidências de que tenha havido equidade na distribuição de bens e a destinação de valores. Não foram esclarecidos, segundo os auditores, o critério objetivo e os referenciais de equidade que nortearam a distribuição das emendas RP-9 entre as capitais que receberam mais.
A equipe do TCU fez uma tabela comparativa dos valores per capita destinados aos municípios beneficiados com mais de R$ 50 milhões por meio da emenda de relator-geral em 2020. Chamou a atenção dos auditores que os municípios de Tauá (CE), Carneiro (AM), Parintins (AM) e Santana (AP) receberam “montantes muito superiores aos verificados nas alocações per capita dos respectivos Estados, regiões e da média per capita nacional”.
O município de Tauá é reduto eleitoral do relator-geral do orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), e governado pela mãe do parlamentar, a prefeita Patrícia Aguiar. Tauá aparece como beneficiada com R$ 146 milhões em 2020, o que dá uma média de R$ 2.476,77 por habitante. O parlamentar não foi localizado ontem.
Debate. Essa foi a primeira análise da equipe de auditores após a Casa Civil e o Ministério da Economia terem apresentado informações e documentos solicitados pelo TCU sobre a execução das emendas de relator-geral. Outros processos aprofundarão o debate no tribunal. A própria análise de mérito, da compatibilidade da sistemática de alteração orçamentária com as premissas da Constituição, será feita em um outro processo, de relatoria do ministro Aroldo Cedraz, que é o relator das contas do governo no exercício de 2021. “Convém registrar que as questões atinentes à suposta aplicação irregular dos recursos alocados sob a forma de RP-9 são objeto de apuração em processos específicos”, salientou a equipe técnica do TCU.
Além do TCU, os questionamentos à aplicação dos valores do orçamento secreto estão sendo analisados no Supremo Tribunal Federal, em ações apresentadas por partidos da oposição que buscam a declaração de inconstitucionalidade das emendas de relator (RP 9). A Procuradoria-Geral da República também abriu uma investigação preliminar a pedido de vários parlamentares da oposição. Há duas semanas, o órgão notificou seis ministérios do governo para que apresentem informações.
Procuradas, a Presidência da República, a Secretaria de Governo e a Casa Civil não se manifestaram até a conclusão desta edição. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.