Os 200 anos, Nabuco e o poder moderador
Certamente, temos o que comemorar nos 200 anos de nossa independência em 2022, mas também muito a lamentar. O processo de nossa independência teve peculiaridades únicas no mundo. A transmigração da Família Real portuguesa para o Brasil foi a primeira delas. A frase de Napoleão sobre Dom João VI se tornou emblemática: “Foi o único que me enganou”. Estava se referindo aos demais monarcas europeus que se curvaram diante dele a ponto de engolirem seus irmãos para ocupar tronos europeus tradicionais.
A fuga de D. João VI para o Brasil, então sede permanente do Império, foi uma retirada estratégica que estava no bolso do colete dos reis portugueses havia décadas. Ele tornou Portugal inconquistável, mesmo que geograficamente ocupado. A divisão do reino, como de fato ocorreu, em três partes, se tornou nula de pleno direito sem a assinatura do rei. E acabou durando pouco tempo.
Felizmente, a História de nosso século XIX vem sendo redescoberta com base em fatos reais sonegados ao povo pelo regime golpista vencedor. Obras como as do historiador José Murilo de Carvalho, “A construção da ordem”, “Teatro de Sombras”, que compõem sua tese de doutorado, e “Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a república que não foi”, dentre outras, foram pioneiras para nos mostrar o que se tornou para nós o lado oculto da lua. A “História de Dom Pedro II”, em três volumes, de Heitor Lyra, diplomata e historiador, nos revelou um Pedro II de corpo inteiro em que as virtudes como estadista superam de longe eventuais falhas. Mais recentemente, os livros de Paulo Rezzutti, na linha da história não contada, merecem registro em função da cuidadosa pesquisa dos fatos, evitando a leviandade e as mentiras de certos autores como a Mary Del Priore em relação, por exemplo, à Princesa Isabel.
Joaquim Nabuco soube reconhecer os méritos e a obra da dinastia bragantina ao longo do século XIX. Ele foi um político brilhante e abolicionista de primeira hora, cuja inteligência nos inspira ainda hoje. A despeito de se manter monarquista após o golpe de 1889, ele criticou duramente o poder moderador em seu famoso sorites. Trata-se de um silogismo que é um encadeamento lógico de proposições em que o atributo da primeira se torna sujeito da seguinte e assim sucessivamente, de tal forma que a conclusão une o sujeito da primeira ao atributo da última.
Mas será que seu sorites captou a realidade de então? Ou será que caberia uma análise mais pé no chão quanto à natureza do poder na época que lhe escapou? Depois de criticar o Poder Moderador pela dissolução – legal, mas ilegítima pelas regras do sistema parlamentar – da Câmara dos Deputados, ele formulou o seguinte sorites: “O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo de nosso país!”
Argutamente, o historiador José Murilo de Carvalho refez o sorites de Nabuco nos mostrando o desastre que teria sido se implantado, pois teria impedido, a alternância dos partidos no poder. Ficou assim: “O Poder Moderador, como é do seu dever, chama para organizar o Ministério o chefe da maioria; o chefe faz as eleições porque tem de fazê-las; a eleição reproduz a maioria anterior. Eis aí o sistema representativo de nosso país!”. Teríamos caído na vala comum da América Hispânica em que as ditaduras e golpes de Estado já eram comuns, desde o início do século XIX, em função da ausência de um mecanismo legal para permitir à oposição chegar ao poder.
Em palestra que proferi algumas vezes, eu formulei um terceiro que denominei de o maléfico sorites republicano. Ei-lo: “O poder republicano, como é do seu dever, convoca eleições através da justiça eleitoral; esta realiza as eleições porque tem que fazê-las; esta eleição dá ao eleitor o direito de votar em A e eleger B, permitindo montar uma coligação majoritária. Eis aí o sistema não representativo de nosso país!” Esta formulação exprime exatamente a ladeira abaixo em que os metemos em matéria de representatividade política.
Vivo fosse, Nabuco, certamente, aprovaria esses novos sorites, e ficaria horrorizado com as distorções do atual sistema partidário e eleitoral (proporcional) que o país adotou há décadas. Ele ainda nos deixou um alerta, que transcrevo: “A razão aconselhava que a dinastia e a força armada se entendessem, se unissem, reciprocamente se apoiassem, animadas como eram do mesmo espírito de abnegação e patriotismo. Em vez disso, infelizmente, o exército preferiu destruir sua aliada natural, e começar sua própria evolução política, perigosa sempre para instituições militares”.
O Poder Moderador não foi, propriamente, uma jabuticaba, aquela fruta que dizem só dar no Brasil. O que não é fato. Sem dúvida, que a constituição de 1824 concentrava muito poder na função moderadora do imperador. Mas o espírito e a prática de um quarto poder moderador para dirimir conflitos entre os outros três continuam presentes na tradição parlamentarista de diversos países ainda hoje. Além dos três poderes tradicionais – executivo, legislativo e judiciário –, existe um quarto poder que é a Chefia de Estado, exercida por um presidente ou um monarca a depender da forma de governo adotada.
Em linhas gerais, o caso do Brasil nos faz lembrar de um verso de Fernando Pessoa, no famoso poema “A Tabacaria”: “Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.” Foi o que aconteceu com o Brasil em relação à sua estrutura política, em que havia um mecanismo de controle efetivo do andar de cima. A chegada da república privou a Nação de ser dona de seu destino. Ficamos à mercê de uma burocracia, ora militar, ora civil, que erigiu um país à sua imagem e semelhança: corrupta, desigual e com políticos que não nos representam. Não foi sempre assim. É possível, então, recuperar o que perdemos. E ter reais razões para celebrar os próximos 100 anos e seguintes.