Os caminhos de Adriana Calcanhotto ao entender o amor

31/03/2023 09:00
Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão / Estadão

Quando entrou em estúdio no final de 2021, Adriana Calcanhotto tinha à disposição 18 canções inéditas, algo extraordinário em sua carreira. Todas assinadas apenas por ela, eram músicas que vinham sendo compostas desde 2016.

Por essa espécie de mágica que só a deusa música sabe fazer – durante esse período, a cantora teve outros projetos, como o álbum Só, lançado em 2020, com crônicas sobre a pandemia -, 11 dessas canções se encontraram, e se encaixaram, no álbum Errante. É o 13º da carreira de Adriana, que chega às plataformas digitais nesta sexta-feira, dia 31.

Na faixa que abre Errante, Prova dos Nove, Adriana apresenta sua identidade: “Tenho o corpo italiano/ O nascimento no Brasil/ A alma lusitana/ A mátria africana”. “Esse disco fala de escolhas e não escolhas. E confirma que a escolha que eu fiz de errar pelo mundo é minha, porém já tinha isso como herança sendo sefaradi”, filosofa Adriana, sobre a recente descoberta de que tem ascendência judaica.

Ainda em Prova dos Nove, a cantora diz ter “a alegria como prova dos nove”. É uma reafirmação do modernismo, do sol da bossa nova e das ideias tropicalistas, pensamentos dos quais sempre foi fiel seguidora. Tudo aparece, natural e automaticamente, no disco.

SOBRE O AMOR

O que somos e o que escolhemos também está presente em Quem Te Disse?, música em que Adriana questiona crenças limitantes sobre o amor, como diferença de idade, raça ou sexo biológico. “Não me quer por ser mulher”, diz um trecho da canção. A partir daqui a identidade olha não só para o individual, mas também para o coletivo.

A faixa Levou para o Samba a Minha Fantasia traz ecos de Camisa Amarela, clássico de Ary Barroso. Em ambas as canções os personagens vão para a folia. A personagem criada por Barroso opta por ser feliz com o folião entre um carnaval e outro. A de Adriana prefere a consciência de se sentir infeliz.

Ela se vinga em Era Isso o Amor?, rock em que ela questiona as volúpias, a volatilidade e o egocentrismo do amor. Para isso, pega emprestada a ideia de Camões sobre o arder. “Há uma separação muito nítida entre o Camões épico e o lírico. O lírico tem essa certeza de que o amor está preocupado consigo. É a ideia de que o desejo não pode ser satisfeito, porque ele se desmancha”, explica.

INDIVIDUALIDADE

Na canção que encerra o disco, Nômade, Adriana retoma o tema da individualidade. Nela, as citações são a pintora Lygia Clark, quando diz “a casa é o corpo” – lema dos nômades, também -, e o compositor Gilberto Gil, que lhe ofereceu uma reflexão enquanto faziam uma turnê pela Europa, em 2021: “Não tem o que não dê trabalho”.

A sentença foi dita por Gil em meio àqueles perrengues normais de uma turnê. “Gil vive lá nas alturas, mas, ao mesmo tempo, conversa com todos. Levei essa frase para além de sua simplicidade, como um verso, um lema de vida”, diz Adriana. A levada vigorosa da canção nasceu da vibração do ônibus em que estavam. Adriana, sentada no chão do veículo, a compôs em seu violão. Gil conheceu parte da canção. Agora, ouvirá o seu resultado final.

Ao seu lado no álbum, Adriana tem, na banda-base, Alberto Continentino (baixo e piano), Davi Moraes (guitarra e violão) e Domenico Lancellotti (bateria e percussão), além dela mesma ao violão. Marlon Sette e Alberto Continentino tocam diferentes instrumentos de sopro. Juntos, garantem a polirritmia impressa na maioria das canções, bem ao gosto da compositora.

Essa será a formação que Adriana levará para a turnê – Alberto e Davi não vão, por conta de compromissos, respectivamente com Caetano Veloso e Marisa Monte – que começa no dia 24 de maio em Coimbra, Portugal.

Antes da nova turnê, Adriana Calcanhotto faz tributo a Gal Costa

Entre o fim de abril e o meio de maio, Adriana Calcanhotto fará sete apresentações do show-tributo Gal: Coisas Sagradas Permanecem em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. A direção será compartilhada entre Adriana e Marcus Preto, produtor que trabalhou com Gal nos últimos 9 anos de sua vida.

Adriana conta que Preto, ao convidá-la para o projeto, justificou que, assim como Gal, ela já gravou de poetas a canções muito populares. “Respondi: e você acha que eu aprendi com quem? Isso não é uma coincidência. O convite é legítimo”, diz Adriana, ao reforçar como Gal teve importância em sua carreira.

Por isso, definir um repertório de cerca de 20 músicas tem sido uma tarefa “hercúlea”, como define Adriana. A cantora foi reouvir a discografia de Gal e assistir a suas entrevistas. O sentimento é de perplexidade diante do legado da cantora. “Não tem Gal mais”, diz Adriana, convicta.

Uma das escolhidas é Volta, samba-canção de Lupicínio Rodrigues que Gal literalmente recriou ao incluí-lo no álbum Índia, de 1973, em uma versão de voz e piano.

A outra é Esquadros, composição de Adriana que Gal registrou no álbum Aquele Frevo Axé, em 1998, quando a canção já não era mais inédita. “Ela me dizia que gostava de Esquadros, mas nunca imaginei que ela gravaria”, diz.

Livre do Amor, essa sim, uma inédita de Adriana que Gal lançou no disco A Pele do Futuro, de 2018, ainda é incerta. Adriana nunca a cantou até hoje. Confessa certo receio. “Ela entra no roteiro hoje, amanhã sai, depois de amanhã volta”, conta.

Gal e Adriana não chegaram a ser íntimas. Os encontros que tiveram são descritos por Adriana como afetuosos. Um deles ficou especialmente marcado para Adriana. Ela, recém-chegada de uma longa turnê, iria passar o réveillon sozinha no Rio de Janeiro. Gal mandou um amigo buscá-la para que ela participasse da festa que daria em sua casa.

Adriana guarda até hoje uma doce lembrança desse dia. A certa altura da noite, debruçadas na varanda, olhando para o mar de São Conrado, Gal lhe disse: “Daqui sete anos é o ano 2000”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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