Os dez mandamentos

07/03/2021 08:00
Por Monsenhor José Maria Pereira

A Quaresma é um tempo de conversão e de renovação. Mas não acontece verdadeira e autêntica renovação se não se passa por uma corajosa revisão da própria vida moral e da própria vida litúrgica; com palavras mais simples, dos próprios costumes e da própria oração.

Ensina São Leão Magno: “A Quaresma é tempo de limpar e enfeitar a casa por dentro. Convém que vivamos sempre de modo sábio e santo, dirigindo nossa vontade e nossas ações para aquilo que sabemos agradar a Deus.”

A Liturgia do terceiro domingo nos apresenta, na primeira leitura, o trecho de Êxodo 20,1-17, o Decálogo. Não pronunciarás o nome do Senhor Teu Deus em vão; lembra-te de santificar o dia de sábado; honra teu pai e tua mãe; não matarás; não cometerás adultério; não furtarás; não levantarás falso testemunho; não cobiçarás as coisas do teu próximo; não desejarás a mulher do teu próximo. Um pormenor chama imediatamente a nossa atenção: a enunciação dos Dez Mandamentos é introduzida por uma significativa referência à libertação do povo de Israel. O texto diz: “Eu sou o Senhor teu Deus, que ti fiz sair da terra do Egito, da casa da servidão” (Ex 20, 2). Por conseguinte, o Decálogo deseja ser uma confirmação da liberdade conquistada. Com efeito, se considerarmos profundamente, os Mandamentos são o instrumento que o Senhor nos concede para defender a nossa liberdade, tanto dos interiores condicionamentos das paixões, como dos abusos exteriores dos mal-intencionados. Os “não” dos Mandamentos são outros tantos “sim” ao crescimento de uma liberdade autêntica.

O Decálogo é testemunho de um amor de predileção. Estes dez mandamentos foram a base da vida moral, antes do povo hebreu e depois do povo cristão. Não contém toda a lei; sua forma negativa (“não fazer”) indica que se trata de alguns limites que delimitam um âmbito moral, antes que descrevê-lo positivamente; dentro devem ser colocados “toda a lei e os profetas” e de maneira especial o mandamento do amor que os resume a todos (Mt 22,40). É precisamente este caráter “negativo” que assegura aos dez mandamentos sua perene, imutável atualidade.

No início, eles não são percebidos nem mesmo como lei, mas como evento: o povo entra na aliança com Deus e os mandamentos são um sinal de sua pertença ao Senhor; são a proclamação de seu caráter de povo eleito, diferente de todos, isto é, santo. Daqui o fato, surpreendente para nós, de que Israel não fala da lei como um peso, ou de uma imposição, mas como de um dom sumamente grande, de um facho que ilumina meus passos (Sl 118,105); fala dela com paixão e com um desmedido orgulho: Ditosos somos nós, Israel, porque a nós foi revelado o que agrada a Deus! (Br 4,4).

O Decálogo é uma escolha de vida que Deus propõe ao homem: Olha que hoje ponho diante de ti a vida com o bem, e a morte com o mal; observes seus mandamentos, suas leis e seus preceitos […] para que vivas e te multipliques […] se não obedeceres e se te deixares seduzir eu te declaro neste dia: perecereis (Dt 30,15 ss). O Decálogo é para o homem, não contra ele; não quer amarrar ou limitar sua liberdade, mas antes soltá-la. Aquilo que proíbe não é, com efeito, algo arbitrário que desagrada a Deus não se sabe por que, mas é o que compromete antes de tudo o próprio homem e sua possibilidade de ter relações equilibradas com os outros, de ser, em outras palavras, autenticamente homem.

Diz S. Paulo: Nós pregamos Cristo crucificado […] força de Deus e sabedoria de Deus (1Cor 1,23). Faz-nos compreender que agora tudo –inclusive a Lei– toma sentido a partir de Jesus Cristo. Nós não estamos mais sozinhos diante da lei; entre nós e o Decálogo existe no meio Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. Ele é a “sabedoria de Deus” para nós, isto é, a nossa lei. Para sermos discípulos do Senhor, temos de seguir o seu conselho: Se alguém quiser vir após de mim, renuncia a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16,24). Não é possível seguir o Senhor sem a Cruz. As palavras de Jesus Cristo têm plena vigência em todos os tempos, uma vez que foram dirigidas a todos os homens, pois quem não carrega a sua cruz e me segue – diz-nos Ele a cada um – não pode ser meu discípulo (Lc 14,27).

Carregar a cruz – aceitar a dor e as contrariedades que Deus permite para nossa purificação, cumprir com esforço os deveres próprios, assumir voluntariamente a mortificação cristã – é condição indispensável para seguir o Mestre.

Eis como a Palavra de Deus se torna hoje ocasião de renovação quaresmal. Ela nos impele com uma força incomum a nos lavar, a nos purificar, a tirar o mal que há em nossas ações (Is 1,16), a eliminar o fermento velho, para ser uma massa nova e celebrar assim, dentro em breve, a festa do Senhor com ázimos de sinceridade e de verdade (1Cor 5,7s).

Últimas