Os efeitos desastrosos da presença da polícia militar na política
O exercício arbitrário da força pelo Estado recorre sempre a algum expediente em que se faz necessária a presença do poder militar. Este sempre atua para dar sustentação ao fim das liberdades civis e políticas. Mesmo no caso da ditadura do judiciário de que nos fala Ruy Barbosa, a força policial está sempre presente para dar respaldo a decisões absurdas emanadas de juízes com vocação para ditadores. Várias decisões do ministro Alexandre de Moraes se enquadram nesse triste figurino de quem prende também julga e pune, segundo juristas de renome nacional como Yves Gandra e Modesto Carvalhosa, dentre outros.
A História nos ensina que não se trata de fenômeno recente. Ele se fez presente na Grécia Clássica e no Império Romano. A famosa obra de Edward Gibbon, “Declínio e Queda do Império Romano”, em seus capítulos iniciais, nos traça um retrato dos estragos provocados na vida política por essa disfunção. Algumas pinceladas nessa tela tipo Guernica, de Picasso, nos dão uma visão bastante boa de como ela se estabelece e se impõe.
Uma das observações iniciais de Gibbon nos informa que, em determinado momento, já no período imperial, os generais romanos deixaram de ser controlados por delegados do senado. Ou seja, tem início a fragilização do poder civil. (Lênin e Trotsky, que não eram militares, na montagem do Exército Vermelho, colocaram um comissário político junto aos comandantes militares para manter o controle do partido sobre eles).
Após o assassinato de Júlio César, assumiu o trono o imperador Augusto com amplos poderes concedidos pelo senado. Teve início o período em que os imperadores romanos passaram a ser divindades vivas, exercendo o poder de um deus. Dele partiu a sintomática abolição das assembleias populares, muito ativas no período republicano. Augusto foi descrito como alguém que fazia uso hábil da máscara da hipocrisia, da falsidade. É óbvio que o poder do imperador não se exercia no vácuo. Tinha respaldo do poder militar das legiões romanas.
Gibbon nos conta que, por cerca de dois séculos da era cristã, ainda houve certo controle dos generais. Em suas palavras: “Raras vezes os soldados eram despertados para a perigosa consciência de seu poderio e da fraqueza da auto-ridade civil de que poderiam resultar, a qualquer tempo, terríveis calamidades”. O livro de Gibbon veio a lume entre 1776 e 1778 a tempo de ser lido pelos pais fundadores dos EUA e pelos nossos no Império. O controle do poder civil sobre os militares é mantido nos EUA até hoje. Foi o nosso caso até o golpe de 1889.
Gibbon vai além sobre os sintomas da decadência romana: “A execução das leis era venal e arbitrária. Um criminoso rico poderia obter não só a anulação da sentença que justamente o condenava como poderia de igual modo infligir punição que lhe aprouvesse no acusador, nas testemunhas e no juiz”. Ilustra nossa decadência moral e nos dá uma antevisão do caso Lula há mais de mil e quinhentos anos atrás e da própria cassação do deputado Dallagnol.
Após mais de 130 anos de república, nos habituamos a ver a presença militar na política como se fosse normal. Sem mencionar os cinco presidentes do ciclo militar mais recente (1964-1985), o brigadeiro Eduardo Gomes e o general Gois Monteiro são dois exemplos bem anteriores a 1964. Eduardo Gomes chegou a dar entrevista falando sobre sua intensa participação política.
O tenentismo aglutinou militares na luta contra as oligarquias sem se dar conta de que a monarquia (derrubada) havia sido sua maior aliada nessa luta no dizer perspicaz de Nabuco. Todas as leis abolicionistas foram passadas por gabinetes conservadores com firme atuação da Princesa Isabel. O saldo dessa presença militar na vida política é bastante negativo na medida em que o país deixou de dispor do poder moderador na gestão das crises nacionais. Saiu em busca de soluções de força, arbitrárias e autoritárias, fora legalidade, geradoras das calamidades mencionadas por Gibbon.
A pobreza político-institucional brasileira levou parte da população às portas dos quartéis para pedir intervenção militar após a eleição de Lula em 2022. A reação da grande mídia foi a de acusar tais manifestações de golpistas. De fato, esta não é a melhor forma de se impedir um presidente de tomar posse. Por outro lado, pesa a falta de legitimidade do eleito quando analisamos o quadro em maior profundidade.
Em artigos anteriores, eu me referi à questão dos 4/5, mostrando que Lula só venceu no Nordeste, perdendo nas quatro grandes regiões geográficas em que o Brasil se divide. Foi então que me ficou claro a concepção que está por trás do colégio eleitoral nos EUA: é a da democracia debaixo para cima. Daí a aparente incongruência de um candidato vencer no voto popular e perder no colégio eleitoral. Como os votos do colégio eleitoral vão todos para o candidato a presidente que venceu em dado estado, pode ocorrer então de o vencedor ser reconhecido pelo voto do colégio eleitoral e não pelo voto popular.
Mas não é só isso. Há que se levar em conta a ausência do poder moderador que já tivemos no Império. A sabedoria convencional, com frequência, o rotula como uma jabuticaba bem brasileira, como se não houvesse algo parecido em diversos países ainda hoje. Sem dúvida, que o imperador tinha poderes bastante amplos, mas sempre usado para coibir os abusos do andar de cima, e não para oprimir o povo.
Países europeus e diversos outros mundo afora, que adotam o parlamenta- rismo, têm quatro poderes: o legislativo, o judiciário, o executivo e a chefia de Estado, esta exercida por um presidente eleito ou por um monarca. Este último tem as características de um poder moderador, sem a amplitude do nosso no século XIX. Mas mantêm a característica de entrar em ação quando os outros três se desentendem. Pode, inclusive, dissolver o Parlamento e convocar eleições gerais. Tudo isso sem precisar recorrer a intervenções ou a golpes militares e suas consequências desastrosas. Dá bem a medida de nossa involução político-institucional com a chegada da república. Medite sobre isto.
Nota: Dois Minutos com Gastão Reis: Militares na Política.