Os macetes para se fazer uma grande biografia, segundo Ruy Castro e Lira Neto
Ruy Castro e Lira Neto figuram na seleta lista dos grandes biógrafos brasileiros. Como poucos, eles descobriram detalhes inéditos na trajetória de personalidades nacionais depois de exaustivas pesquisas, que exigiram anos de investigação sólida, ancorada em depoimentos, documentos, cartas, jornais de época.
Com isso, jogaram luz sobre a vida de nomes como Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, no caso de Ruy, e de Getúlio Vargas, Padre Cícero, Castello Branco e Maysa, no trabalho de Lira. Também realizaram reconstituições históricas de ritmos como a bossa nova e o samba.
Ruy e Lira relatam a transformação pessoal experimentada após anos de trabalho com afinco sobre algum biografado. Ruy, por exemplo, descobriu-se mais brasileiro depois de narrar a trajetória do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues enquanto Lira, homem nada religioso, descobriu a substância da fé sertaneja ao se confrontar com o padre Cícero Romão Batista.
A escritora Virgínia Woolf via o interesse em nossos “eus” e em outras pessoas como um desenvolvimento tardio do pensamento humano. E, apesar de ela considerar a biografia como uma arte jovem, Plutarco (46-125 d.C.) reuniu, na Antiguidade, o perfil de cerca de 50 gregos e romanos (como o imperador macedônio Alexandre, o Grande, e o maior imperador romano, Júlio César) em Vidas Paralelas.
Respaldados por uma sólida experiência, os dois lançam agora guias em que oferecem segredos, técnicas e truques de como escrever biografias. Também relembram episódios marcantes e decisivos nas apurações em A Vida por Escrito, de Ruy, e A Arte da Biografia, de Lira. A convite do Estadão, responderam às mesmas perguntas, que estão a seguir.
Faz parte do trabalho do biógrafo fazer justiça a alguém?
Ruy Castro – Sim, a palavra exata é esta: fazer justiça ao biografado, seja ela agradável ou não. Por definição, o biógrafo trata da vida pessoal e profissional de alguém e, assim como esta última se compõe de sucessos e fracassos, a primeira também se compõe de qualidades e defeitos. Pode acontecer de a biografia revelar uma pessoa cuja imagem pública era completamente equivocada, como acredito no caso de Nelson Rodrigues. Ou brutalmente incompleta, como no de Garrincha. Ou fascinante, como no de Carmen Miranda. Do ponto de vista do biógrafo, é maravilhoso quando ele encontra um filão original, que ninguém ainda explorou.
Lira Neto – André Maurois, romancista e biógrafo, dizia que toda biografia deveria trazer, na primeira página, a seguinte inscrição: “Tu não deves julgar”. O historiador Marc Bloch também afiançava que, entre julgar ou compreender, cabe à escrita do passado a segunda opção. Compreender, no caso, não significa ser condescendente ou passivo, muito menos acrítico. Bem ao contrário disso. Mas ocorre que o gênero biográfico exige um necessário espírito de alteridade, para se compreender as contradições e as ambivalências do biografado, seus erros e acertos, vícios e virtudes. Ao escrever sobre Getúlio Vargas ou Castello Branco, por exemplo, não pretendi levá-los a uma espécie de tribunal histórico, para sentenciá-los como inocentes ou culpados. Biografar significa compreender as ações e motivações dos personagens em seus respectivos contextos históricos, não para justificá-las ou endossá-las, mas para tentar entendê-las, decifrá-las, interpretá-las.
Como não correr o risco de reduzir a arte à vida ou a vida à arte?
Ruy – Em A Vida por Escrito, advirto para o risco de o biógrafo confiar demais no que o biografado disse ou escreveu sobre si mesmo. No caso de o biografado ser um romancista, então, isso é mortal. O romancista, por definição, é um mentiroso no bom sentido – um criador de ficções -, e achar que ele se parece com seus personagens leva fatalmente a equívocos. Nelson Rodrigues, por exemplo, tido como um tarado sexual por suas peças de teatro, era um homem que ia cedo para casa, com chocolates para a mulher e 250 gramas de manteiga debaixo do braço. Mas, naturalmente, em segredo, era também um tarado sexual, como todos nós. Quando Manuel Bandeira lhe perguntou porque não escrevia sobre “pessoas normais”, Nelson respondeu: “Mas, meu querido Manuel, eu só escrevo sobre pessoas normais, como eu e você”. O próprio Nelson disse que “se todos conhecêssemos a intimidade sexual um dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”.
Lira – Biografar é buscar entender as tensões, conexões e os impactos mútuos entre a vida privada e a trajetória pública do biografado, ou seja, o entrelaçamento entre indivíduo e contexto. Somos as circunstâncias do nosso tempo, adicionadas às nossas peculiaridades subjetivas. É assim também, claro, com os biografados. Na escrita biográfica, o contexto não pode se sobrepor ao personagem; mas o personagem também não pode aparecer como se tivesse existido no vácuo, em um vazio histórico. O historiador Edward Carr brincava com a questão, ao dizer: “A pergunta sobre o que vem primeiro, a sociedade ou o indivíduo, é como a pergunta sobre o ovo e a galinha”. O homem é modelado pela sociedade tão eficazmente quanto a sociedade é modelada por ele, propunha Carr. Não dá para reduzir a vida à obra, nem a obra à vida. Uma ajuda a explicar a outra.
Como as biografias podem fazer algo relacionado ao nosso mundo?
Ruy – Ao mundo, não sei, mas ao leitor, sim. A vida de alguém pode ser uma inspiração para nós – para que queiramos ser como ele ou exatamente o contrário. Mas tudo que ilumine a História, que nos revele como as coisas se deram no passado, será importante para o nosso presente ou futuro. O mundo seria bem mais pobre se não fossem os historiadores e os biógrafos. Aliás, os biógrafos são uma espécie de irmãos caçulas dos historiadores.
Lira – Nos meios historiográficos, a narrativa, de modo geral, e a biografia, de forma específica, por muito tempo foram consideradas gêneros bastardos, menores, ilegítimos. Hoje, pelo menos nos centros acadêmicos mais arejados, esse preconceito deixou de fazer sentido. O grande historiador italiano Giovanni Levi já afirmou que a biografia constitui o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura são transmitidas à historiografia. Enquanto o francês Jacques Le Goff disse que a biografia seria o ápice do trabalho do historiador. Ou seja, narrar, biografar, constitui uma escrita da história legítima. Meu livro parte desse pressuposto.
Como não tornar a biografia algo entediante?
Ruy – Sabendo a exata medida do que precisa ser aproveitado da apuração. A verdadeira biografia é feita exclusivamente de informações, não de deduções ou achismos, mas também não pode asfixiar o leitor. Não pode fazê-lo mastigar mais do que ele poderá engolir. Os biógrafos ingleses e americanos, que se julgam na obrigação de aproveitar tudo que apuram, escrevem biografias de 1.200 páginas, em que só faltam descrever cada vez que o biografado faz pipi. Isso é entediante.
Lira – A escrita biográfica não terá nada de entediante, pelo menos na medida em que consiga transpor para o papel não um relatório frio e burocrático a respeito de uma determinada existência, mas sim uma experiência viva. A escrita criativa de não ficção exige uma pesquisa igualmente criativa, que saiba capturar as cores, texturas, sabores, sons e visualidades de outra época. Para tanto, é preciso saber olhar para a documentação. Costumo dizer que o biógrafo deve ter senso de detetive, olhar de antropólogo, espírito de arqueólogo. Vislumbrar sentidos a partir de vestígios mínimos, saber fazer perguntas à documentação, decodificar e interpretar resquícios ínfimos, tudo isso de modo a tentar reconstituir o passado da maneira mais coerente possível, para levar o leitor para dentro da cena.
Como deve funcionar a interação entre a memória individual e a coletiva?
Ruy – Toda informação parte da memória individual. Cada entrevista é um cara a cara entre o entrevistador e o entrevistado, que são o biógrafo e sua fonte. A soma de todas as informações colhidas e apresentadas no livro pode construir uma memória coletiva que ainda não se percebera. Espero ter feito isso em meu livro Metrópole à Beira-Mar. Não havia até então essa consciência de que o Rio dos anos 1920 era absolutamente moderno, cosmopolita e internacional.
Lira – O conhecimento do passado é necessariamente falhado, parcial, lacunar. Só a arrogância ou a ingenuidade, características do positivismo do século 19, pode se arvorar à proeza de ter acesso integral à verdade e à reconstrução absolutamente perfeita dos fatos. O trabalho historiográfico está limitado pelo arquivo, pelos vestígios documentais, pela seletividade da memória. O grande desafio é compreender como são organizados os arquivos, qual a intenção por trás de cada documento que chegou até nós, o que há por trás das informações de um determinado entrevistado. Por que certos documentos são preservados, outros não? Existe informação desinteressada? A memória, individual ou coletiva, não é algo plástico, construído e reconstruído socialmente, a todo momento? São perguntas assim que o biógrafo não pode perder de vista.
Há alguma biografia entre as suas que tenha te transformado de alguma forma? Como foi isso?
Ruy – O biógrafo é o primeiro a ser alterado por uma biografia. O Anjo Pornográfico, sobre Nelson Rodrigues, me tornou mais brasileiro. Estrela Solitária, sobre Garrincha, me fez olhar para dentro de mim mesmo. E Carmen – Uma Biografia, por tudo que aconteceu a Carmen Miranda, me tornou mais humano. Mas, para mim, o importante é que, a cada biografia ou livro de reconstituição histórica que produzo, quero fazer ainda mais no livro seguinte – ouvir mais gente, ouvir mais vezes mais gente e fazer-lhes perguntas que nem eu gostaria de responder.
Lira – Claude Arnaud, que biografou Jean Cocteau, dizia que o biógrafo, na verdade, é um biófago, isto é, alimenta-se da vida alheia, do corpo e da alma de seu biografado. A biografia, como exercício de devoração, exige uma dedicação irrestrita, pois é um trabalho exaustivo, obsessivo. Impossível sair de tal aventura sem ser transformado por ela. No meu caso, cada biografado me transformou de algum modo, mais ou menos intenso, ao me mobilizar e me exigir ao longo de alguns anos de trabalho. Mas, sem dúvida, Padre Cícero me confrontou com vários de meus preconceitos. Agnóstico, homem nada religioso, precisei fazer um mergulho etnográfico no universo das romarias de Juazeiro do Norte para tentar compreender a substância da fé sertaneja. Continuo desprovido de qualquer convicção pessoal em relação à religião e à espiritualidade. Mas hoje compreendo muito mais a visceralidade da crença nordestina em torno de Cícero Romão Batista.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.