Os males do (próprio) umbigo no comando

09/10/2021 08:00
Por Gastão Reis

O Brasil tem hoje não só um, mas dois grandes problemas mal resolvidos, que vêm nos perseguindo há décadas: perda de identidade nacional e incapacidade crônica de implementar políticas com resultados de longo prazo. O primeiro, extremamente sério, nos leva a duvidar de nossas próprias raízes luso-afro-indígenas de povo miscigenado. O segundo nos induz à perda de tempo com irrelevâncias de momento que levam o país a colecionar décadas perdidas. Ambos são sintomas claros do (próprio) umbigo no comando. Um esquece as raízes que nos une e o outro reflete a falta de visão de futuro.

Já escrevi vários artigos (“Djamila e racismo: acertos e equívocos, em 19/09/2020; “República e racismo estrutural”, em 28/11/2020; e “Palmares e o movimento negro, em 13/02/2021) sobre o movimento negro no intuito de dar uma contribuição pé no chão a suas atividades em defesa da herança e da rica contribuição dada à cultura e à riqueza nacionais pelos descendentes de africanos. Essa luta é fundamental para revigorar nossa identidade nacional, e precisa ser levada adiante em bases concretas com clara visão das forças que atuaram a seu favor (leis e iniciativas ao longo do Império) e aquelas que lhe foram contrárias (visão racista da república desde suas origens).

O apagão da memória nacional foi um trabalho realizado com método pela república. O resultado dessa insanidade fez com que a população brasileira passasse a desconhecer suas raízes históricas. Um exemplo desse descaminho é a ênfase dada por setores importantes do movimento negro ao que chamam, desavisadamente, de racismo estrutural no Brasil simultaneamente à adoção de uma perspectiva de tomar o caso americano como referencial a seguir.

Nos EUA, houve um racismo visceral que destruiu elementos da cultura africana na culinária, na religião de origem dos negros e, em certos aspectos, até na música.Uma visão destruidora da alma do povo negro que perdurou com a segregação até 1960(!). O tom por vezes rancoroso em palestras e debates do escritor americano negro James Baldwin confirma esse racismo visceral expos-to em seus livros. No Brasil, as tradições culturais africanas continuam vivas, mesmo reconhecendo eventuais repressões no passado. É fundamental ter claro que a miscigenação faz parte de nossa História desde os tempos coloniais.

Na luta contra os holandeses, nas duas batalhas dos Guararapes, 1648 e 1649, nossas tropas eram compostas por portugueses, negros e índios, estes dois grupos comandados, respectivamente, por seus irmãos da mesma etnia Henrique Dias e Felipe Camarão, agraciados depois com títulos de nobreza por Dom João IV, de Portugal. Numa dessas batalhas, nossas tropas miscigenadas enfrentaram os holandeses em desvantagem numérica de 3 para 1 dos nossos, e saímos vencedores. Bom relembrar que oficiais brancos ainda comandavam os regimentos negros americanos em pleno século XX, na II Guerra Mundial.

Em linha muito próxima ao que foi dito até aqui, cabe registrar o excelente artigo do Carlos Alberto Di Franco, intitulado “Diz amém que o ouro vem” publicado no Estadão, de 04.10.2021. No primeiro parágrafo, ele nos brinda com um breve histórico do atleta Ítalo Ferreira, campeão olímpico do surf nas Olimpíadas de Tóquio. E nos diz que ele é “o retrato perfeito da grande maioria dos brasileiros: fé em Deus. Esforço, sacrifício, superação. Profundo sentimen-to de gratidão. Valores familiares arraigados. Generosidade que encanta”.    

Mais adiante, põe o dedo na ferida ao afirmar: “Desníveis salariais entre brancos e negros não têm fundamento racista: ganham menos sempre os que têm menos escolaridade. Mecanismos sociais de exclusão têm como vítimas os pobres, sejam brancos, negros, pardos, amarelos ou índios. E o principal mecanismo de reprodução da pobreza é a educação pública de baixa qualidade. Só investimentos maciços em educação podem erradicar a pobreza”.

O articulista, de fato, não chega a mencionar a responsabilidade histórica da república nesse triste quadro. A moderna literatura econômica enfatiza a importância crítica do ensino básico público de qualidade na redução da desigualdade. Portanto, Pedro II tinha razão em priorizar o ensino básico gratuito de qualidade na cidade do Rio de Janeiro, por lei, sob a batuta do governo central do Império.  É mais que revelador o fato de a remuneração de seus professores ser, em termos reais, o triplo do que é hoje. E ainda que a preocupação com os umbigos alheios estava na ordem do dia.

A crítica por não termos naquele tempo uma universidade strictu sensu, mas apenas faculdades isoladas de Direito, Engenharia e Medicina, não se sustenta. O segredo de Polichinelo de muitos negros se distinguirem como jornalistas, médicos, advogados e engenheiros estava assentado na educação básica gratuita de qualidade na capital do Império. E mesmo no início da república. Esse compromisso foi sendo abandonado pelos governos no pós-1889. Di Franco deixa claro que o problema vem de longe.

Os últimos lances de nossos parlamentares federais demonstram a desenvoltura com que a visão umbigoide vem-se portando em Brasília. No alvoroço provocado pela CPI da Covid-19, levaram adiante na surdina mudanças na Lei de Improbidade Administrativa em que os aspectos positivos perdem de lavada para os negativos. Na prática, torna o combate à corrupção bem mais difícil. O analista político Gerson Camarotti vê em andamento um processo de ataque sistemático do Congresso ao Ministério Público, buscando esvaziá-lo.

O último lance da festa macabra com o dinheiro público à sombra da CPI foi a iniciativa do Congresso de facilitar a criação de cerca de 200 novos municípios a partir de seis mil habitantes. Ao invés de mais saúde e mais educação e saneamento básico para a população, abrem as portas para a criação de inúmeros cargos inúteis.

Essa visão umbigoide de políticos que não nos representam exige uma reação da sociedade civil em direção à sua identidade nacional e de políticas  inclusivas de todos os umbigos. Mãos à obra.

 (*) Entrevista do autor intitulada “Quando o Brasil perdeu o rumo da História”, com mais de 22 mil visualizações, pode ser acessada apenas digitando seu título no Google.

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