Os novos bárbaros: a Comunidade Europeia e os USA

10/mar 08:00
Por Leonardo Boff

A verdadeira guerra de extermínio que o Estado de Israel, sob o comando de um celerado de extrema direita, Benjamin Netanyahu, está fazendo com os mais de dois milhões de palestinos da Faixa de Gaza, apoiado pela maior potência bélica do mundo, os USA e mais ainda pela inteira Comunidade Europeia (NATO) nos legitima de chamá-los de novos bárbaros. Cercaram como num chiqueirão os milhões de palestinos na pequena faixa de terra, junto ao mar, para melhor eliminá-los. Para agravar sua perversidade, cortaram-lhe a água, os suprimentos alimentares, a energia, os medicamentos para os hospitais. E para chegar ao cúmulo, usaram contra a população bombas de fósforo branco que queima as pessoas até os ossos.

Foi uma reação totalmente desproporcional contra um ataque terrorista do Hamas (a parte militarizada da população civil) feita contra Israel no dia 7. A reação não conhece limites éticos, humanitários e de mínima compaixão. Mais de 11 mil crianças foram assassinadas, milhares de mães, cerca de 70 mil civis e centenas e centenas de feridos e ainda o escombro de 400 mil casas arrasadas com bombas de grande potência.

Como não chamar esta carnificina de barbárie por parte dos USA e daqueles que, orgulhosamente consignaram no Preâmbulo da Constituição da União Europeia o seguinte:

O Continente europeu é portador de civilização, que seus habitantes a habitaram desde o início da humanidade em sucessivas etapas e que no decorrer dos séculos desenvolveram valores, base para o humanismo: igualdade dos seres humanos, a liberdade e o valor da razão…”.

Esta visão não é dialética. Ela não inclui nem reconhece as frequentes violações destes valores, as catástrofes que a cultura europeia produziu com ideologias totalitárias, guerras devastadoras, matando cerca de 200 milhões no continente e nas colônias, colonialismo, escravagismo, imperialismo, genocídio de povos originários (num século morreram na América do Sul, sob a ação dos europeus 61 milhões de indígenas), dizimando inteiras nações em contraste frontal com os valores que proclamou. O que a Comunidade Europeia, como cúmplice, está fazendo na Faixa de Gaza mostra a sua tradicional arrogância e atitude farisaica. Deixo de fora os USA que sempre vivem em guerra contra algum país, cometendo as maiores barbaridades. Detenho-me apenas nos europeus.

Toda esta dimensão trágica só foi possível porque nunca se reconheceu, de fato, o outro como seu semelhante e nunca se respeitou de forma consequente o diferente. Esta concepção não foi ainda superada na consciência da maioria dos países europeus.

Vamos tomar como exemplo a inferiorização do outro, no caso do tratamento dado às mulheres.

Na cultura ocidental em geral (sem considerar outras culturas) tinha centralidade a visão patriarcal e machista que conjugou e organizou os principais valores na forma do masculino. Em razão desta dominação, a mulher foi submetida, marginalizada e tornada socialmente invisível.

Criou-se uma justificativa ideológica para esta inferiorização. Ela foi buscada em Aristóteles que cunhou uma compreensão preconceituosa, cuja ressonância alcançou Santo Tomás de Aquino, com ecos em Freud e Lacan. O filósofo afirmou que a mulher é  “um homem que ficou a caminho”, “um ser inacabado e inferior” (mas em latim).

Setores tradicionalistas da Igreja comparecem como bastiões culturais que mantém viva e ainda reproduzem esta inferiorização da mulher. Para esses setores as mulheres não gozam ainda de plena cidadania eclesial. Isso acabou prevalecendo no Sínodo Panamazônico, pelo qual se pretendia conferir um rosto indígena à fé cristã. Predominou o paradigma machista, romano e ocidental. Índio casado não pode ser padre, por não ser celibatário. Negou-se às mulheres o sacerdócio; concedeu-se a uma pequeníssima parcela, participar na administração institucional da Igreja. Mas não lhes foi permitido exercer a liberdade com referência ao direito reprodutivo, entre outros, sendo que são mais de 50% da comunidade cristã.

Esta inferiorização da mulher cinde a humanidade de cima abaixo. Confere demasiadado poder ao homem. Este, ao não reconhecer a alteridade e a igualdade da mulher, perdeu o interlocutor que a natureza e Deus lhe haviam dado para juntos viverem de forma cooperativa. Quando o Gênesis diz que são imagem de Deus e feitos homem e mulher, entende este fato não como possibilidade de reprodução da espécie. Mas como companheiros entre si e permanentes interlocutores.

Esse cara-a-cara entre homem e mulher, impediria uma relação de dominação. E essa, por razões que não cabe aqui referir, se implantou. Sem a mulher, o homem projeta sua força física e capacidade intelectual na lógica da competição na qual só um ganha e todos os demais perdem. Impede a cooperação na qual todos ganhariam. Deixa o campo aberto ao surgimento de estruturas de poder que implicam hierarquização e exclusão. Efetivamente tributa-se ao patriarcalismo e ao machismo o tipo de Estado centralizado que temos, a fabricação da guerra e os estabelecimentos de costumes sociais machistas e de leis discricionárias.

Mas graças à luta histórica das mulheres está se operando uma demolição sistemática das falsas razões da sociedade patriarcal. Elas elaboraram uma visão mais holística do homem e da mulher e de sua missão na história: criar relações de parceria no respeito às diferenças em vista de uma relação mais includente e menos conflitiva entre os gêneros e em benefício da paz política e religiosa entre os povos.

O que, vergonhosamente, está ocorrendo a céu aberto em Gaza, é a prevalência da violência masculinista, da impiedade para com os mais fracos e a pura e simples eliminação de pessoas que para os sionistas radicais nem deveriam mais existir. Mas reitero que com muito esforço cremos que o ser humano pode ser melhor: pode fazer do distante um próximo e do próximo um irmão e uma irmã. Mas quando?

Sobre o autor: Leonardo Boff escreveu com Rose Marie Muraro o livro Feminino e Masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças, Record, RJ 2002/2010; O rosto materno de Deus, Vozes 11 edições, 2012.

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