Os operários das ruínas

12/04/2020 00:00

Irreversível. O tempo, no pisar das horas, carrega, pela estrada da lembrança, o que o destino planta. Mesmo contra a nossa vontade, iremos lembrar deste período em que a população do planeta Terra foi nocauteada por um elemento do mundo microbiológico. Um vírus diminuiu a velocidade dos automóveis, não disparou nenhum míssil, não puxou nenhum gatilho, mas já matou milhares de pessoas sem respeitar fronteiras, nem ideologias.

Deve ser frustrante para os aficionados em armas atômicas: ter um arsenal nas mãos e não poder disparar nem mesmo uma bala para matar um inimigo que o atormenta. Os armamentistas devem estar em crise existencial, porque, neste instante, o belicismo é inoperante. E também não se mata um vírus pela “canetada” na assinatura de decretos. Acredito que isso seja angustiante para os absolutistas que acham que o poder deve ser mantido pela força das armas ou barganhado pelo vil metal. Viver é surpreendente…

Os piores reflexos da ignorância estão na falta de sensibilidade para assimilar as lições de vida…

Acho que já deu para entender a diferença entre um laboratório de pesquisa científica e um fast-food. Não existe uma chapa quente pronta para fazer uma vacina a tempo e a gosto do freguês.

– Plante uma semente e conte os dias para colher os frutos – esse é um bom exercício para perceber que o tempo não passa em função das nossas vontades.

Caríssimo, Augusto dos Anjos, “o verme – este operário das ruínas – que o sangue podre das carnificinas come, e à vida em geral declara guerra”, encontra-se exaurido, está trabalhando diuturnamente sem descanso, porque a morte veio como peste e, em alguns países, deixou em colapso não só a rede hospitalar, mas também o sistema funerário.

Palmas para os profissionais da saúde que estão nos limites de suas forças, lutando para salvar vidas…

Palmas para os garis que estão limpado as ruas, colhendo lixos para deixar a cidade limpa, diminuindo assim as possibilidades de contaminação…

Palmas para os bombeiros e os demais servidores públicos que estão empenhados em manter os serviços essenciais…

Palmas para os caminhoneiros que não saíram das estradas para levar o pão à mesa dos que estão em casa, respeitando o isolamento social…

Palmas para os professores que estão usando os recursos possíveis para levar o conhecimento a seus alunos por causa do fechamento das escolas…

Em síntese, palmas para todos os que optaram por trabalhar em casa, priorizando a vida. E não podemos esquecer aqueles que têm fé e rogam a Deus para que esta pandemia tenha um final menos trágico.

Mas aqui, em especial, quero ressaltar o trabalho dos coveiros que estão cansados por abrir covas e enterrar os corpos das vítimas desta pandemia, provocada pela proliferação do novo coronavírus (Sars-Cov-2). O serviço de cremação também não está dando vazão. O vulcão da miséria entrou em erupção, as suas larvas já estavam espalhadas pelo mundo, a morte veio apenas para evidenciar a efemeridade do homem.

Não sei se as ações das empresas funerárias estão em alta nas bolsas de valores, mas o que passa pelas nossas retinas são corpos retirados dos hospitais em caminhões frigoríficos, caixões enfileirados no interior das igrejas, esperando a hora do enterro.

Em Guayaquil, no Equador, o serviço funerário entrou em colapso. Não há mais espaço nos necrotérios. As famílias têm que esperar dias para enterrar um parente falecido.

Tiraram dos mortos o direito às exéquias, já não colhem as lágrimas na partida. A solidão de um caixão sem nenhum ente querido ao lado é uma cena triste.

“O único milagre que podemos fazer será o de continuar a viver, disse a mulher, amparar a fragilidade da vida um dia após outro dia…” – Escreveu Saramago no “Ensaio sobre a Cegueira”.

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