Palavra questão de vida ou morte

05/03/2021 08:30
Por Maria Eugênia de Menezes, especial para o Estadão / Estadão

Um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro, Consuelo de Castro (1946-2016) é revisitada com duas montagens: Aviso Prévio, que estreia nesta sexta, 5, no Teatro Viga, e Medeia por Consuelo de Castro, em versão exibida pela cia BR 116 em seu canal no YouTube. A simultaneidade dos espetáculos chama a atenção. Ainda que tenha deixado um legado consistente e seja dona de uma das prosas mais cortantes da nossa literatura, Consuelo faz parte de toda uma geração pouco explorada pelas encenações contemporâneas.

Títulos brasileiros são maioria nos palcos. Quem observasse a ampla oferta que havia em São Paulo antes da pandemia poderia perceber que mais de 60% da dramaturgia encenada atualmente é nacional. Diretores e produtores, contudo, costumam privilegiar autores vivos – e jovens.

Salvo as honrosas exceções de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos, que podem ser vistos comumente em cena, parece raro que as companhias se interessem por trabalhos dos séculos 19 e 20. Entre os mais marginalizados, estão os autores que ficaram conhecidos como “geração de 1969”, formada por Antonio Bivar, José Vicente, Leilah Assunção, Isabel Câmara e também por Consuelo de Castro.

“Não é por acaso que Consuelo retorna agora”, considera Bete Coelho, que protagoniza a montagem de Medeia. Para a atriz, vivenciamos um período de crescente autoritarismo, propício a um retorno às reflexões trazidas pela dramaturga. “Estamos vivendo um tempo em que querem nos desviar da verdade e até mesmo desfazer a história.”

Lançado em 1968, ano de endurecimento do regime militar, Prova de Fogo foi o primeiro texto de Consuelo de Castro. Censurada já na origem, antes mesmo de chegar ao palco, a peça tratava justamente da agitação política no movimento estudantil da época. A criação seguinte, À Flor da Pele, foi encenada em 1969 e continuava gravitando em torno da conflituosa situação vivida pelo País naquele momento. Apresentava a temática, porém, em outra chave. A partir do embate de um casal de amantes – uma jovem idealista e um homem de meia-idade conservador – a autora equacionava aspectos que perdurariam na sua obra, como a necessidade de transformação social e as desiguais relações de poder entre homens e mulheres.

Tanto Medeia quanto Aviso Prévio fazem parte de uma segunda fase na trajetória da escritora, iniciada nos anos 1980. Mantém-se uma consistência em relação aos temas e a seu perfil combativo, mas há uma reinvenção formal, com uma dramaturgia mais fragmentada e complexa. A psicanálise também entra com força em suas criações, trazendo camadas extras na composição das personagens.

Concebida com o título de Medeia em Mar Aberto – e rebatizada como Medeia por Consuelo de Castro pela cia BR 116 – a obra redimensiona a tragédia clássica de Eurípedes, ampliando a dimensão da traição sofrida pela protagonista. A mítica figura grega que abandonou seu povo e seu país para seguir Jasão, líder dos Argonautas, não se revolta por um abandono de natureza apenas conjugal. Ao se casar com Glauce, filha do rei Creonte, Jasão rejeitaria também os ideais de justiça que motivaram o casal a fugir e roubar o Velocino de Ouro.

Traída de todas as maneiras, essa mulher arquetípica (e uma das principais figuras femininas da literatura universal) encontra espaço para se expor na escrita visceral proposta pela dramaturga. “Para Consuelo, cada palavra era uma questão de vida ou morte”, considera Bete Coelho, que chegou a participar de uma leitura da peça, dirigida pela própria Consuelo, em 1998. “É uma autora verborrágica, intensa, mas de uma verborragia justa e necessária.”

Em Aviso Prévio, o olhar recai sobre um casal prestes a se separar – oportunidade de mais uma vez ir fundo na desequilibrada relação entre gêneros. “Trata-se de um estudo onírico sobre o casamento e o descasamento”, pontua a diretora Clara Carvalho.

Nesse estudo, somos apresentados aos personagens Oz e Ela, que não irão levantar questionamentos apenas acerca de sua frustração amorosa, mas também sobre questões sociais, insatisfação existencial e a finitude da vida. Montada pela primeira vez em 1987, com Nicette Bruno e Paulo Goulart, a peça agora é novamente encenada por atores casados na vida real: Fernanda Couto e Kiko Vianello.

A dissolução do casamento vai sendo espelhada em outras situações: patrão e empregada, mãe e filha, trapezista e palhaço. Com esses pares de personagens (as duplas são uma constante em suas obras), a autora consegue explorar seu talento para a composição dos diálogos, o que lhe rendeu prêmios como Molière e APCA. “Com esses fragmentos, sem uma estrutura muito linear, ela consegue ir mais fundo nas questões, trazendo a psicanálise e também um flerte com a loucura”, considera a encenadora, que costura esses episódios alternando um registro ora farsesco, ora realista.

Mesmo com a iminência do retorno à fase vermelha do Plano São Paulo, a estreia presencial será mantida. A temporada no teatro retorna no dia 20, se mantidas as determinações do governo do Estado. Mas as sessões poderão ser acompanhadas online a partir do dia 16.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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