Palco para as experiências da gestação
As memórias da gestação e a sensação de ‘transe’ de um trabalho de parto são inspirações para Tati Caltabiano, que estreia o espetáculo A Conquista de Miranda – Uma Versão Isolada nesta segunda-feira, 22, na plataforma da Mungunzá digital do Teatro de Conteiner. A atriz iniciou o processo de reflexão sobre os modos de trazer um bebê ao mundo com a própria gravidez. Ela cresceu ouvindo a mãe dizer que “não tinha dilatação” e que, por isso, o processo havia sido muito sofrido.
“Fui atrás do meu nascimento, queria saber detalhes. Descobri que minha mãe havia passado por uma violência obstétrica e que essa crença da ‘não dilatação’ havia sido construída ali. Minha chegada ao mundo não tinha sido tão legal assim. Por isso, queria uma forma de nascer mais afetuosa para minha filha. Comecei a temer não mais a dilatação, mas a possibilidade de ser violentada”, lembra.
Tati Caltabiano acreditava que poderia ser vítima de violência obstétrica também, por isso, decidiu fazer o parto da filha em casa. Mergulhada nessa pesquisa que a fez investigar os modos de nascer, um universo novo se abriu: estudou fisiologia do parto e encontrou coletivos de mulheres que falam sobre o tema. “Acredito que meu empoderamento veio muito da leitura de relatos de parto, de todos os tipos. Fiquei viciada em ler essas histórias e ver outras mulheres parindo. Foi daí que veio minha certeza em querer algo domiciliar. Não idealizei em nenhum momento, tinha total consciência das possíveis intercorrências, mas queria muito passar pela experiência de parir de forma natural”, relata.
O tema das violências obstétricas emergiu durante a pesquisa e passou a nortear a criação da dramaturgia. Para Tati, existe um silenciamento sobre esse assunto. “Fica muito na esfera privada. Para uma mulher que não sabe que passou por isso, mas que sentiu no corpo essa violência, falar sobre o seu parto é rememorar, reviver esse momento, e muitas não querem. Não querem porque dói, porque gerou trauma, quase sempre físico e emocional. Aquele momento era para ser um dos mais emocionantes e belos de suas vidas. Foi um momento desrespeitoso e violento, uma tortura. Que pode levar a óbito tanto mãe quanto bebê. É um assunto muito sério, que está inserido dentro de um sistema operante, patriarcal, misógino, preconceituoso, racista e de classe. Trazer a tona este tema é tirá-lo do silenciamento, do campo privado, e lançá-lo na esfera pública, é importante torná-lo político.”
Na pele
A vivência pessoal fez com que a atriz trouxesse uma narrativa sensível ao teatro e que revela a potência do corpo feminino. Ela começou a produzir o conteúdo cênico a partir de uma pesquisa, ainda em 2018, quando descobriu que estava grávida de Miranda. Tati criou experimentos dramatúrgicos, que foram documentados a partir de ensaios cênicos, registros de vídeo e áudio das fases de gestação, além de entrevistas com outras mães e parteiras. Quando pensou na peça, não poderia prever a pandemia e, consequentemente, o isolamento social. “Em abril de 2020, no primeiro lockdown, a sala de casa virou lugar de ensaio e os acontecimentos externos interferiram diretamente. O que acontecia lá fora gritava muito forte dentro de casa, me chamava, me convocava. Os panelaços, uma mulher grávida tomando sol na sua varanda, os vizinhos gritando para que as pessoas nas ruas ficassem em casa, e o silêncio arrastado dos dias. Acredito que a atmosfera da obra ganhou o peso das filmagens na madrugada, da solidão dos ensaios. Completamente diferente da concepção da obra presencial”, avalia.
Utilizando sua casa como um set de filmagem, a direção de cena alterna planos fechados, apontando um estúdio onde são registrados depoimentos. O plano médio revela um ateliê onde uma barriga de gesso está sendo confeccionada e, em um plano mais aberto, a sala com projeções sobre o corpo da atriz. A iluminação é toda feita com o projetor. Tati Caltabiano veste em cena o mesmo roupão usado durante o seu trabalho de parto.
Documentários como a trilogia O Renascimento do Parto, de Érica de Paula e Eduardo Chauvet; Orgasmic Birth, de Debra Pascali-Bonaro; O Que Eu Poderia Ser Se Eu Fosse, do cineasta Bruno Jorge; e Elena e Olmo e a Gaivota, ambos de Petra Costa, serviram como base para a atriz. Ela também buscou referências com os livros Autoescrituras Perfomativas – Do Diário à Cena, de Janaina Leite, e A Cientificação do Amor, de Michel Odent.
“Mergulhar nesse universo foi revolucionário. Tenho acreditado nas pequenas revoluções, nas micropolíticas, que geram um novo campo de consciência. Espero que isso reverbere nas pessoas que vejam a peça”, espera Tati Caltabiano.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.