Para que geladeira?

20/09/2021 16:51
Por Ataualpa Filho

Às vezes, precisamos do humor para expor a nua e crua realidade que nos tortura com suas contradições. Com o aumento da conta de luz, do preço do gás, da gasolina, cada dia fica mais difícil “abastecer” a geladeira.  Vale ressaltar que o homem não é o único animal que guarda alimento. Alguns cães também têm esse hábito de, após saciar a fome, enterrar as sobras do que comeu. Memorizam os lugares, mas quando esquecem, usam o faro para procurar o que foi enterrado. Por se tratar de um alimento perecível, como osso com carne, ficam expostos a enfermidades provocadas por bactérias presentes na terra que envolve o alimento. A doença mais contraída pelos cães com essa prática é o botulismo que causa paralisia muscular. A toxina botulínica que a provoca é a mesma usada no botox, empregado em tratamento estético.

A gralha-azul também faz uso desse expediente de enterrar alimentos, após saciar a fome. É comum, na região sul do país, em que há várias araucárias, encontrar essa ave enterrando pinhão no solo para comer depois, só que esquece, voa para outros lugares. E assim, ela contribui para a disseminação do conhecido pinheiro-do-paraná.

Citei esses dois casos introdutoriamente com o propósito de exemplificar o hábito animalesco de armazenar alimento.  A geladeira, basicamente, foi inventada com essa finalidade. Nesta pandemia, cresceu o número dos sem geladeiras; dos que têm geladeira, mas sem condições de abastecê-la. E, se não há como abastecê-la, não há como mantê-la ligada em razão da conta de luz. A linha da miséria subiu de “patamar”, colocou na rua um número maior de pessoas que estão apelando para o comércio informal. A luta contra a fome fica mais acirrada com o crescente desemprego.

A perda do poder aquisitivo é visível na geladeira. Os espaços vazios aumentam. A despensa já foi dispensada na moderna vida urbana. O cômodo para armazenamento ficou reduzido a armários, que hoje também se encontram vazios. Os carrinhos de supermercados já não estão carregando tanto peso no final dos meses.

Para ajudar nessa reflexão, trago aqui versos de uma canção de Belchior, que está no álbum “Elogia à Loucura”, lançado na década de 80:  “Balada de Madame Frigidaire”:

“Ando pós-modernamente apaixonado pela nova geladeira./ Primeira escrava branca que comprei veio e fez a revolução./ Esse eterno feminino do conforto industrial/ injetou-se em minha veia…/ dei bandeira!/ E ao pôr fé nessa deusa gorda tecnologia/ gelei de pura emoção.”

Nessa balada, recheada de ironias, ele indaga:

“Mister Andy, o papa pop,/ e outro amigo meu, xarope,/ se cansaram de dizer:/ ‘pra que Deus, Dinheiro, Sexo, Ideal, Pátria, Família, pra quem já tem Frigidaire?’”

Mesmo com a nossa geladeira abastecida, precisamos pensar na fome dos outros. As cestas básicas são essências. Não se trata apenas de caridade, mas de consciência da responsabilidade social.

A caridade, a solidariedade sempre encontram, pela frente, a frase que já está em domínio público: “o Sol nasce para todos”. Contudo é preciso que se diga que nem todos têm as mesmas condições para lutar por um lugar ao Sol. Por isso, quando tenho oportunidade, pronuncio: “Senhor, dai pão a quem tem fome. E fome de justiça a quem tem pão.”

Recorro aqui novamente à canção do Belchior: “Afinal, na geladeira, bem ou mal, pôs-se o futuro do país/E um futuro de terceira, posto assim na geladeira, nunca vai ficar passado.”

O empobrecimento da população não pode ser colocado somente na conta da pandemia. É uma questão mais ampla, envolve a gestão pública. Quando gestores estão voltados para as oligarquias, a população padece pelo descaso. O atendimento dos interesses das elites reflete drasticamente na barriga do povo.

É preciso dar o peixe e ensinar a pescar. Posso lhe falar, com convicção, que não se obtém o êxito necessário em um processo educacional, quando os educandos estão de estômago vazio. A fome desestrutura qualquer cidadão. Não sou adepto das políticas assistencialistas. Todo homem precisa ganhar o pão com o suor do rosto para poder andar de cabeça erguida, sem depender de favores alheios. Enquanto houver fome, não haverá justiça social.

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