Peça ‘Anjo de Pedra’ trata de opressão feminina e religiosidade

01/04/2022 08:00
Por Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão / Estadão

Nem À Margem da Vida (1944), Um Bonde Chamado Desejo (1947) ou Gata em Telhado de Zinco Quente (1955). O diretor Nelson Baskerville desvia do senso comum e aponta Anjo de Pedra (1948) como a melhor peça escrita pelo dramaturgo americano Tennessee Williams (1911-1983). “É a mais direta nas relações de causas e consequências. Você enxerga ali uma mulher oprimida por um estilo de vida preconceituoso e como isso transforma a história dela”, justifica o encenador, em referência à personagem Alma Winemiller.

Diante da admiração, Baskerville confessa que há duas décadas sonhava levar Anjo de Pedra aos palcos. “É uma peça em que mesmo os personagens secundários têm grande importância e se tornam agentes dos acontecimentos”, defende, mais uma vez, a preferência. Pouco cultuada, a obra ganhou raras montagens brasileiras. As principais delas foram protagonizadas por Cacilda Becker, em um distante 1950, e por Nathalia Timberg, dez anos depois. Em São Paulo, a peça foi vista em 2011, com pouca repercussão, sob a direção de Inês Aranha, tendo Rosana Maris e Rui Ricardo Diaz nos papéis principais.

A adaptação de Anjo de Pedra assinada por Baskerville e Luis Marcio Arnaut quebra esse jejum no Tucarena em uma temporada que se estende até 15 de maio. O elenco de oito atores é formado por Sara Antunes, Ricardo Gelli, Chris Couto, Kiko Marques, Carolina Borelli, Luiza Porto, Selma Luchesi e Thomas Huszar. “Levantamos o espetáculo apoiados na multiplicidade das ideias de cada um porque essa imagem do diretor como o dono da verdade ficou para trás, não pode existir mais no teatro”, declara Baskerville.

ALIENAÇÃO

A trama é ambientada no verão de 1916. Filho de um médico, John Buchanan Jr. (interpretado por Gelli) segue os passos do pai e, nas férias da faculdade, visita sua cidade. É um sujeito mundano, aberto aos prazeres da vida, o oposto de Alma (papel de Sara), sua vizinha. Criada sob as rédeas de um pai autoritário, o pastor Winemiller (vivido por Marques), a jovem é apaixonada pelo rapaz desde criança e cresceu sem oportunidade de fazer sua voz ouvida. Sua mãe (representada por Chris), tida como louca, é outra vítima da opressão e se alienou em um mundo particular.

Para o diretor, o projeto se concretiza na hora certa, ressignificado por conta da pandemia e dos debates feministas e religiosos. “John e o pai dele tentam isolar um vírus que espalharia a gripe espanhola e mataria milhões de pessoas e existe um paralelo sobre o quanto a fé pode privar as pessoas de liberdade”, compara. Baskerville buscou uma leitura social e antropológica, analisando a origem dos personagens e o efeito disso em suas vidas. “O perigo é tratar Alma e John como uma história de amor que não deu certo e não é nada disso. O amor deles jamais seria concretizado por causa dessas diferenças”, afirma o dramaturgo.

O ator Ricardo Gelli se desafia na quinta incursão ao universo de Tennessee Williams. Ele participou de Rosa de Vidro (2007), versão de João Fábio Cabral para À Margem da Vida, Essa Propriedade Está Condenada e Por Que Você Fuma Tanto, Lily?, duas peças reunidas no projeto Propriedades Condenadas (2014), e, mesmo que não tenha estreado por problema de agenda, ensaiou A Catástrofe do Sucesso (2019). “Eu levo tudo o que estudei para o John porque Tennessee cria os personagens a partir de projeções biográficas”, explica. “O John é o sonho americano realizado, só que ele não queria esse sonho, então virou um cara limítrofe, à beira do abismo.”

CONEXÕES. Sara Antunes, por sua vez, estabelece conexões entre Alma e momentos marcantes de sua carreira, como os espetáculos Hysteria (2002), do Grupo XIX de Teatro, e As Meninas (2009), texto de Maitê Proença e Luiz Carlos Góes dirigido por Amir Haddad.

“Temos mais uma mulher enclausurada por uma sociedade doente e é curioso como eu, enquanto artista, rodo, rodo e acabo ligada a projetos coletivos que expressam minhas pesquisas individuais”, reconhece a atriz.

O final de Alma nesta encenação sugere diferentes entendimentos e, segundo Sara, se torna mais contemporâneo e libertário. A atriz garante que, durante o processo, lutou muito para ampliar essa visão, e Baskerville, de ouvidos abertos, endossou a contribuição. “Existe uma tendência do Tennessee de castigar as personagens femininas, como se fosse um recado para as mulheres: ‘não faça isso porque pode acontecer com você a mesma coisa'”, afirma o diretor. “Acho que o papel do encenador é rever questões assim e adaptá-las para o mundo de hoje.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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