Penafiel: prato cheio para a fome e a alma
Cozido, feijoada, dobradinha, leitão assado, coelho ensopado. Parâmetro máximo de qualidade nos chamados ‘pratos pesados’, era o Penafiel, contudo, prato cheio para quem – apostando na fome como melhor tempero – almejava a leveza da alma. Afinal, até mais do que as lendárias receitas, foi o restaurante peça fundamental na construção de caráter.
Foto: Arquivo pessoal Joaquim Pereira Luiz
Foto: Google Maps
Inabalável, era da modesta cozinha do estabelecimento que saíam pratos saborosos o suficiente para motivar a vinda de moradores do Rio a Petrópolis. Clientes como o documentarista petropolitano Paulo Henrique Seabra, de 62 anos, que atribui ao Penafiel o título de melhor restaurante da cidade nos anos 70.
Universitário, à época, ele explica: se de segunda a sexta as refeições que fazia eram sujeitas ao que oferecia o bandejão, no fim de semana a festa era poder se render ao Penafiel. “Eu ansiava por esses dias! Era tudo feito na hora e das mesas a gente observava os cozinheiros operando. Eram três senhores de 60, 70 anos”.
Detentores das indecifráveis e fabulosas receitas que, semanalmente, Paulo Henrique desfrutava, era o trio também titular do carinho de longa data oferecido pela família do menino. “Dois deles tinham trabalhado no restaurante do meu avô e no bar Rosa Vermelha, que ele abriu na década de 50. Sempre que vejo o culto à figura do chef lembro deles”.
Garantia de satisfação – independente do que se escolhesse, para quem pegava no batente a preocupação se limitava ao tamanho do prato. No início do mês era certo optar-se pelo prato fundo, com direito a refrigerante de acompanhamento e tudo. Bastava surgirem, contudo, os primeiros sinais de que o dinheiro ia começar a faltar que era ele raso e olhe lá.
Foi nos idos de 1964 que Amarílio Tadeu Freesz de Almeida, agora com 74 anos, começou a servir como soldado ao 1º Batalhão de Caçadores, o 1º BC. Nascido na Raiz da Serra ele passava a semana no Quartel numa rotina que, não fosse pelo Penafiel, se limitaria às suas idas à Biblioteca Municipal e ao Ginásio Estadual Washington Luiz.
Liberado do Quartel ao meio dia – após passar a manhã cumprindo uma série de atividades físicas, Tadeu se dirigia, então, para a Biblioteca, onde, dependendo do dia, mais ia para descansar do estudar. Quando o relógio marcava 17h30 era hora de ir ao Penafiel, onde, fora o café da manhã servido no Batalhão, ele desfrutava da única refeição do dia.
“Sobrevivi, casei, constituí família e estou por aqui. Numa das vezes em que visitei Petrópolis com as minhas filhas fiz questão de mostrar a elas o restaurante que fez parte de um momento importante da minha vida”; momento em que encontrou, nos ingredientes do restaurante, elementos capazes de moldar e fundamentar o caráter.
O cidadão português petropolitano
Quando se diz que, mais do que sustento, o alimento do Penafiel abastecia o espírito, é a histórias como a do próprio fundador que se busca referenciar. Nascido na cidadezinha de Penafiel, ao norte de Portugal, foi na decisão de se mudar para Petrópolis com a família e mudar de vida que ‘seu’ Antônio fez do restaurante prato cheio para a alma.
Sua vinda para a cidade aconteceu em 1948, com o filho mais velho, José. Seis anos depois seria a vez do senhor Joaquim Pereira Luiz, hoje com 84 anos, fazer o mesmo caminho que o pai. Alguns meses mais tarde chegavam, ainda, Ana – esposa de Antônio, e o caçula da família, Manoel. O ano era 1954 e a família estava, mais uma vez, reunida.
Reunida e pronta para ir à linha de frente! Até porque, ainda que tenha sido trabalhando numa pedreira que ‘seu’ Antônio conquistou o título de cidadão petropolitano, foi junto ao restaurante – adquirido entre 1956 e 1957 – que o português cativou e moldou, de vez, o público que atendeu até o início da década de 80, quando o negócio foi passado adiante.
Tendo auxiliado o negócio principalmente aos fins de semana – já que nos demais dias trabalhava ‘para fora’, o senhor Joaquim relembra os pedidos mais servidos nesse período: o cabrito à caçadora, aos sábados; e o leitão à brasileira, aos domingos. “Ainda disputávamos sueca valendo um leitão assado. Daí, quem perdesse, pagava!”.
Foto: Em pé, da esquerda para a direita, aparecem – do mais novo para o mais velho – os três irmãos do senhor Antônio: Manoel, Joaquim e, por fim, José. (Arquivo pessoal Joaquim Pereira Luiz)
Escritório dos portugueses, foi também no restaurante que o pai da empreendedora Ana Paula de Melo Saraiva, de 49 anos, o ex-combatente Saraiva “viveu desde que se aposentou”. De tão recorrente, a presença dele no local acabou por influenciar ainda as idas da família ao espaço, onde volta e meia estavam.
“Chegava domingo, minha mãe fechava o fogão e saímos para comer. Lembrei até do gosto do filé à francesa de lá!”. Sempre no capricho, o cardápio do estabelecimento garantia o retorno da clientela que, tal qual a família de Ana Paula, nele constituía segunda casa. Para o professor Luiz Alberto Grossi, de 69 anos, Penafiel se tornou sinônimo de união.
Num de seus almoços na companhia de outros professores no estabelecimento, Luiz explica que surgiu a ideia de formar um grupo do magistério. Grupo que mensalmente se reuniria para relaxar em algum bar da cidade. O nome? Não poderia ser outro: Penafiel. “O chamamos assim porque foi lá que tudo começou”.
Tendo durado por pelo menos 10 anos, o grupo concretizou o restaurante como símbolo de novo ciclo. Até porque, desde que aqui estabelecido, Penafiel foi referência ao caminho em Portugal trilhado e ao caráter em Petrópolis fundado.
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