Pessimismo do historiador, nossas notas e o futuro

10/09/2022 08:00
Por Gastão Reis

Pretendo abordar três temas neste artigo: o pessimismo do renomado historiador José Murilo de Carvalho em relação ao que virá; a cara da república e dos animais que constam de nossas notas; e o futuro do País.

Confesso certa surpresa ao ler a entrevista do historiador José Murilo de Carvalho (JMC), publicada no Globo, em 01/09/2022, cujo título já prenunciava o que viria: “Longe de ser o país do futuro”. O entrevistador foi o jornalista Manuel Carvalho, do jornal Público, de Portugal. Logo de início, ele lança uma pergunta arguta: “O Brasil vive um ambiente de desistência cívica?”. O entrevistado responde com duas perguntas: “Qual país vindo da tradição portuguesa ou espanhola teve êxito? Isso faz com que comecemos a perguntar: o que deu errado?”.

JMC arrola as razões de seu pessimismo, ressalvando que talvez seja a idade, seus 83 anos. Desigualdade brutal, nível educacional, ainda muito baixo, e crescimento do PIB a passo de cágado.E já de décadas. Trata-se de um grupo de fatores mal resolvidos, mas fundamentais para se pensar num futuro promissor. Ao ser questionado sobre algo de positivo nesses 200 anos, ele diz que talvez seja o fato de o Brasil não ter se fragmentado. A vinda de Dom João VI para cá arrefeceu os movimentos separatistas e manteve o país unido.

Mas, em seguida, JMC questiona se não teria sido melhor ter se separado em vários países. Fala do motivo edênico, de Sergio Buarque de Hollanda. Orgulhar-se na linha da Amazônia ainda preservada. Queixa-se de que padecemos de um Alzheimer coletivo (desmemória), no que tem plena razão. Para ele, “a unidade talvez tenha sido uma vantagem. A língua é uma só”. Interrogado sobre uma “política de ódio” e racismo estrutural, ele nos fala de que lá, nos EUA, é muito pior (o racismo visceral mencionado em meus artigos), mas que em compensação existe uma classe média negra, empresários negros e universidades negras, o que configuraria uma situação bem melhor.

Na parte final da entrevista, JMC se queixa da desigualdade, da pouca progressividade nos impostos, dos políticos medíocres, da questão educacional mal resolvida em termos de qualidade. E que a população ficou alheia à política até os anos de 1950. Quanto à nossa incrível capacidade de cometer sempre os mesmos erros,ele critica a elite econômica, inclusive camadas do funcionalismo público e das estatais, que bloqueiam as medidas redistributivas.

JMC talvez seja o historiador com maior conhecimento de nossa história do século XIX. Daí minha surpresa por ele não ter estabelecido um contraponto entre o legado do Império em contraposição ao ocorrido na república, que já durou o dobro do tempo do Primeiro e do Segundo Reinados somados. JMC tocou en passant na tutela militar sem lhe dar nesta entrevista a ênfase habitual. Eu me refiro ao fato de ele ter sempre denunciado os enormes problemas decorrentes de sermos uma república tutelada pelos militares.

É a síndrome de chamar um advogado para cuidar de uma dor de dente aguda. Ou seja, a presença militar na vida política e econômica sem o devido preparo para tais funções. Os desacertos daí advindos estão hoje bem docu-mentados por economistas de renome, e que não são de esquerda. Este saldo negativo vem de longe.A rigor, desde de 1890, a primeira das décadas perdidas.

Faço alguns contrapontos. O primeiro é que, até 1889, o país ia bem: liberdade de imprensa, corrupção sob controle, crescimento expressivo do PIB na última década do Império, voto distrital, sistema parlamentarista, fim da escravidão, militares sob controle civil. Comparado aos países de língua espanhola, nós éramos uma saudável exceção, dado que eles não satisfaziam à maioria desses indicadores de saúde institucional desde o início do século XIX.

O segundo é que avançamos muito na questão da desigualdade, pondo fim à escravidão paulatinamente em que as leis abolicionistas evitaram uma guerra civil como a dos EUA. O terceiro é que o negro brasileiro conseguiu preservar sua herança cultural (culinária, religiosa e musical) bem mais do que o negro americano. Lá inexistem religiões de matriz africana, comida africana típica e miscigenação. Persiste o racismo visceral. Até 1960(!), a segregação do negro nos EUA fazia dele uma não-pessoa.

Quanto às notas brasileiras, elas configuram um fato único: extirparam delas as grandes figuras de nossa história e colocaram no lugar animais. Pode? Nada disso ocorre nos países de língua espanhola ao nosso redor, e nem mesmo em outras partes do mundo, onde são sempre relembradas. Observe, caro(a) leitor(a), a cara da república em nossas notas. Seu semblante é, visivelmente, de quem está de estômago embrulhado. Até se entende, não é mesmo?

Vejamos o futuro. JMC tem razões para seu pessimismo. O Brasil tem hoje uma moldura político-institucional disfuncional. Caímos numa armadilha institucional imobilizante. Os americanos, na passagem do século XIX para o XX, souberam superar a referida armadilha. Nós, até agora, ainda não, o que autoriza o pessimismo de JMC.

Mas o Brasil, sempre surpreendente, consegue ter um sólido agronegócio. E crescendo a passos largos. De cada 5 pratos servidos no mundo, um deles é servido pelo Patropi. A lição que encerra é o milagre que uma carga tributária de apenas 6% pode fazer comparada aos mais de 40% que estrangulam a indústria de transformação há décadas. Esquizofrenia? Sem dúvida.

Em matéria de agronegócio, o Brasil não se enquadra nas previsões de JMC; na indústria, sim! Mas há razões sérias para pessimismo quanto ao fato de a população perceber elevada corrupção no congresso, nas três esferas de governo e no judiciário. Sem equacionar questões como desemprego, corrupção, saúde e educação de qualidade, JMC acerta em seu pessimismo. Mas se soubemos fazer a coisa certa no agronegócio, por que não fazer nos demais setores? A boa notícia é que 76% da população acreditam no Brasil, segundo pesquisa Ipec publicada no Globo (7/9/2022). Isto é determinante.

(*)Nota: Link para uma live minha, “Construção, Desconstrução e Reconstrução da Autoestima Nacional”: https://youtu.be/fdeYAFRGqkI, que nos redireciona.

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