Por uma vida Magna

28/05/2023 08:00
Por Ataualpa A.P. Filho

Ilustríssima Senhora Morte, venho por meio desta, mui respeitosamente, posicionar-me diante de suas ações. Mas antes de tudo, peço-lhe desculpa pelo atrevimento: afirmo aqui com toda convicção que a senhora perdeu. 

Sim. Dessa vez, a Senhora perdeu. Não houve a consumação do fim. O que se encontra neste caixão é uma matéria que veio do pó e ao pó voltou. Porém houve um durante que se transformou em um exemplo de vivência, em uma resignação que a Poesia vai carregar para a eternidade.

Não há dúvidas que as suas ações são mais eficazes no plano material. Sei que o tempo geralmente se posiciona ao seu lado para cobrir o passado com o manto do esquecimento. Mas quando a memória carrega consigo um exemplo dignificante da essência humana, o tempo muda de lado, porque é obrigado a ficar a serviço da eternidade.

O eterno, Senhora Morte, faz parte da dimensão imensurável que a alma humana alimenta pela Misericórdia do Sem Fim. O homem não se restringe a um conjunto de vísceras que perambula por este planeta. Quando nos limitamos ao instinto, a irracionalidade prevalece, uma vez que todas as ações são regidas pelo desejo de suprir o consumismo visceral. A matéria é deteriorável; a alma, infinita. Por isso que a imortalidade tem essência abstrata, não está exposta aos nossos olhos. 

“O homem é como um cais, donde está sempre partindo ou se despedindo de alguém ou de alguma coisa. Mas, de maneira recíproca, há de estar sempre chegando, ou se aproximando de alguém ou de alguma coisa. É a dualidade da vida. Assim é o Universo com o seu sistema bipolar de forças. É a lei que dá equilíbrio e sustentação a tudo o que existe. Mas se a partida é, por vezes, ruptura, um ato doído, a chegada é, muita vez, um recomeço, um ponto de esperança nova.”

Essa maneira de enxergar a vida é de um manauara que conheci em Petrópolis, Fernando Augusto Magno. Agradeço ao destino a oportunidade de consolidar uma amizade que está além da materialidade humana. Quando nos encontramos, ele já enxergava as pessoas por dentro. Ele nunca viu a cor da minha face. Ele deixou em minha alma a certeza de que a vida em simplicidade leva ao despojamento, encontra a Poesia que nos faz suportar qualquer sofrimento. Ele partiu em silêncio…

Estas lágrimas, Senhora Morte, aqui destiladas não são de alegria, nem de tristeza. Não estou alegre, nem estou triste. Apenas não tenho mais controle sobre os meus sentimentos, ou melhor, não preciso mais reter nada. O fluxo do viver já me ensinou que a ternura é a resistência mantida pelo amor. Não podemos perdê-la para não sermos dominados pelo ódio que mantém o homem preso aos bens materiais.

A Poesia é inerente a todos os viventes, só que alguns têm a dádiva de ser Poeta. Fernando Augusto Magno é um dos que recebeu essa bênção de Deus. O Pessoa tem razão quando disse: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.” E a maior obra que podemos edificar consiste no próprio viver. E pela Poesia de Magno, vi o menino mergulhado em rios correndo pelo fio da lembrança, imerso em azuis, chegando ao mar que une todas as ilhas. Havia um porto seguro dentro dele, atado aos sentidos: “vieram-me do viço da terra e do mar. Pousaram em meus olhos, pele, ouvidos. Outros impregnaram-me o olfato e paladar. Tudo de maneira natural, sem que fizesse esforço por muito querer.”

Quem é do mar sabe que a melhor bússola está nos sentidos. O viver é uma trilha que aponta para a felicidade. Esta tem a esperança como uma fiel perseguidora. 

Esse menino foi um timoneiro perseverante: “a felicidade era tudo que cabia no meu querer. E cabia tudo.” Para quem está embarcado na vida, a felicidade torna-se obstinação. Contudo é preciso saber que nem sempre os ventos sopram como convém. Mas quem está no convés sabe que a água do mar tem sabor de lágrimas. Por isso, Senhora Morte, estas lágrimas aqui são lembranças das ondas do mar que o Magno deixou em mim em forma de Poesia. E aqui concluo estas mal traçadas linhas com as palavras dele:

“Devo acrescentar, entretanto, que nem sempre a perda da visão nos leva a não enxergar. O acidente no qual fui vitimado, permitiu-me um mergulho em diferentes mares. Impregnou-se de poesia. Fez nascer o escritor. Se me foi roubado certo jeito de ver, descobri outro. Tornei-me poeta carregando o mundo para além dos olhos.” 

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