Pra pensar no carnaval

11/02/2018 06:00

“Tá legal/ tá legal,/ eu aceito o argumento/ mas não me altere o samba tanto assim/ olha que a rapaziada está sentindo a falta/ de um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim”. Não sou de nenhuma velha guarda, mas me incluo nessa rapaziada que o Paulinho da Viola falou. Estou sentindo a falta de um samba de raiz, com matriz brasileira para se dançar em gafieira sem pinote. 

Concordei com Noel Rosa quando afirmou que “o samba na realidade não vem do morro/ nem lá da cidade/ E quem suportar uma paixão/ sentirá que o samba então/ nasce do coração”. Ele disse que, na época dele, o cinema falado foi o grande culpado da transformação. Se estivesse vivo e visse o que está no YouTube, ficaria mais horrorizado. Esqueceram a letra, a cadência, pensam que cantar é exibir-se. Estão mais preocupados com a coreografia do que com a poesia da canção. Em “Feitio de Oração”, esse compositor de Vila Isabel, cantou: “Batuque é um privilégio/ ninguém aprende samba no colégio/ sambar é chorar de alegria/ é sorrir de nostalgia/ dentro da melodia”. Isso reitera o que dissera Caetano: “A tristeza é senhora/ desde que o samba é samba é assim/”. Nessa vertente em que o samba é considerado “filho da dor”, encontra-se o “Samba da Bênção” de Vinícius de Moraes, no qual ele diz: “Mas pra fazer um samba com beleza/ é preciso um bocado de tristeza”.

Mas a tristeza que eles falam não é igual a esta que sinto no momento, proveniente de uma decepção que já está se tornando crônica, porque, diante do quadro que se apresenta, as esperanças são ínfimas, não alimentam nem a mais raquítica utopia. Deram um tiro na música popular brasileira, querem transformá-la em um produto de consumo descartável. 

 Com a massificação da vulgaridade, a poesia ficou distante das composições classificadas hoje como “hits” carnavalescos. Como se não bastasse o zika vírus, a dengue, a febre amarela, as balas perdidas, este verão carrega consigo uma péssima qualidade musical. O fio de consolo está na efemeridade dos modismos, não permanecem na memória popular como “Bandeira Branca” de Max Nunes e Laércio Alves, “Máscara Negra” de Zé Keti, “Ô Abre Alas” de Chiquinha Gonzaga. Esta marchinha, composta em 1899, irá muito além de “Que tiro foi esse?” da Jojo Maronttinni e “Joga Bunda” de Aretuza Lovi.

 Marchinhas como “O Teu Cabelo não Nega” e “Índio Quer Apito”, consideradas politicamente incorretas, caíram no gosto popular como o “Atirei o pau no gato”, mas sem as conotações pejorativas que são atribuídas a elas.

Na internet, encontram-se várias músicas impróprias para as matinês, fazem apologias à droga e ao sexo, sem pudor algum. Em muitas, há a participação de meninas que não sabem que “o mundo é um moinho”, tritura sonhos mesquinhos, reduz a pó as ilusões. Mestre Cartola já anunciara a crueldade do destino, pune os abismos cavados com os próprios pés.

Outro ponto que merece reflexão está relacionado à proliferação dos blocos de rua, arrastando multidões, vejo-os como uma reação ao carnaval armado para inglês ver de camarote. Para externar a alegria, não precisa carro alegórico, nem fantasias caras. O povo desfila sem comissão julgadora, mesmo sem segurança e sem infraestrutura sanitária. 

E quanto à violência urbana, vale ouvir o samba de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro:

“O dia em que o morro descer e não for carnaval/ ninguém vai ficar pra assistir o desfile final/ na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu/ vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil/ (é a guerra civil)”.


Últimas