Prefeitura no ABC vê fim de ‘interesse público’ e pede despejo de ONG Meninos e Meninas de Rua

26/07/2023 10:56
Por Rubens Anater / Estadão

A Justiça deverá julgar nesta quarta-feira, 26, uma ação da prefeitura de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, que pede tutela de urgência para que a ONG Associação Projeto Meninos e Meninas de Rua seja obrigada a desocupar imediatamente um imóvel público. A ação corre na Vara da Fazenda Pública. Segundo a ONG, o espaço é utilizado desde a década de 1980 para ações de defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua e/ou vulnerabilidade.

De acordo com a ação protocolada pela prefeitura, o uso do imóvel foi permitido à ONG a título precário e gratuito por meio de um decreto oficial de 1994 que previa que a entidade ‘deveria desocupar o imóvel imediatamente quando solicitado pela Administração, sem direito à retenção ou indenização por quaisquer benfeitorias, ainda que necessárias, as quais se incorporariam ao patrimônio público municipal”.

A ação indica que ‘o interesse público que acarretou a permissão de uso deixou de existir, pois a Administração Pública pretende dar ao imóvel outra destinação’. O espaço, segundo o documento, passaria a ser um centro de cuidado com pessoas idosas. Em novembro 2018 a associação teria sido notificada para desocupar o imóvel no prazo de 15 dias, mas não o fez. Por isso, a prefeitura pede tutela de urgência ‘para que o réu desocupe o imóvel imediatamente’.

Alega-se que a ‘recalcitrância’ da entidade está frustrando a implantação do centro Dia do Idoso. ‘Como se sabe, a demanda por serviços públicos de saúde e de assistência social aumenta a cada dia, principalmente em tempos de crise econômica’, aponta a prefeitura.

A ONG contesta essa conduta e afirma que as atividades do Projeto Meninos e Meninas de Rua, que a prefeitura busca desalojar, são fundamentais na assistência à população vulnerável, ao atender diretamente cerca de 600 pessoas e, indiretamente, mais de duas mil por ano.

Em nota, a entidade diz que as ações constituem na distribuição de alimentos, oficinas culturais, apoio psicológico, encontros educativos, entre outros, ‘ com o foco em crianças, adolescentes e famílias em situação de maior vulnerabilidade’, além de apoio a crianças e adolescentes com familiar encarcerado. Ela aponta, também, que suas atividades e auxílios ajudam a construir uma rede de apoio para as mães da comunidade.

Na nota, a coordenadora do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública, Lígia Mafei Guidi, apresenta apreensão. “Nossa preocupação é a interrupção desta política social tão importante para os meninos e meninas em situação de rua, prestada há mais de 30 anos”.

Já o diretor da ONG, Marco Antônio Silva Souza, conhecido como Markinhos, questiona o fato de que São Bernardo do Campo aderiu ao Projeto Cidades Antirracistas do Ministério Público de São Paulo. “São Bernardo é uma cidade antirracista? Então, por que tenta, com tanto esforço, despejar um projeto com reconhecimento nacional na área de educação? Por que acabou com diversos projetos e encerrou ações na periferia ou voltadas para a população negra?”, disse.

O embate entre a prefeitura de São Bernardo do Campo e a Associação Projeto Meninos e Meninas de Rua se desenrola há anos, com direito a manifestações públicas e protestos. O pedido de desocupação, feito em 2018, chegou a ser suspenso temporariamente durante a pandemia.

Desocupação, indenização e pagamento de despesas

Além de pedir a desocupação imediata do imóvel, por meio de tutela de urgência, a ação da prefeitura requer ainda que a Associação Projeto Meninos e Meninas de Rua seja condenada a pagar as ‘despesas necessárias com eventual retirada de benfeitorias, bens e coisas, cujo valor deverá ser apurado na fase de liquidação’, assim como as despesas processuais e os honorários advocatícios.

A ação solicita também a condenação da ONG ao pagamento de uma indenização ‘pela ocupação irregular do imóvel’. O valor também deverá ser apurado na fase de liquidação.

Entidades protocolam amicus curiae

Quatro entidades da sociedade civil intercederam a favor da Associação Projeto Meninos e Meninas de Rua por meio de um amicus curiae, uma ferramenta jurídica que permite que entidades apresentem fatos para tentar ajudar o juiz responsável a julgar corretamente algum processo.

Nesse caso, o Instituto de Referência Negra Peregum, a Coalizão Negra por Direitos, a Associação de Amigos e Familiares de Presos/as e a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio alegaram que ‘o Projeto Meninos e Meninas de Rua é uma importante ferramenta de fortalecimento, defesa e promoção de direitos da infância e juventude, sobretudo de crianças e jovens de famílias negras e das periferias, que são as mais atingidas por violações de direitos de toda sorte’.

O documento acrescenta, ainda, que ‘a permanência do PMMR no prédio onde está estabelecido há mais de 30 anos concretiza a defesa dos princípios constitucionais democráticos, por fortalecer o desenvolvimento de políticas de atenção a populações vulnerabilizadas pelas desigualdades raciais e sociais que desafiam o Estado Democrático de Direito’.

Denúncia na ONU

Segundo nota da Associação Projeto Meninos e Meninas de Rua, as entidades Uneafro Brasil e o Movimento Negro Unificado denunciaram ‘as práticas da administração municipal’ à Organização das Nações Unidas durante o Fórum Permanente de Afrodescendentes, nos Estados Unidos. Antes disso, o Projeto, junto com entidades do movimento negro, denunciaram a cidade por ‘racismo institucional’ no Ministério Público.

COM A PALAVRA, A PREFEITURA DE SÃO BERNARDO DO CAMPO

Procurada pela reportagem do Estadão, a prefeitura de São Bernardo do Campo enviou nota em que alega que o projeto não vem desenvolvendo atividades ordinárias há anos e que requisitou o espaço para ‘melhor utilização com outros projetos de relevância social’. A prefeitura questionou, ainda, a idoneidade do projeto junto ao TCE. Leia a nota na íntegra:

A prefeitura de São Bernardo o projeto “Meninos e Meninas de Rua” é objeto de ação judicial em curso. A entidade ocupa área pública e não vem desenvolvendo atividades ordinárias há anos, razão pela qual o município requisitou o espaço para melhor utilização com outros projetos de relevância social. Além disso, a entidade é apontada como inidônea pelo TCE/SP (conforme anexo) e, desta forma, se encontra impedida de receber qualquer espécie de repasse de entes públicos no Estado de São Paulo, incluindo a concessão de espaços públicos.

COM A PALAVRA, A ASSOCIAÇÃO PROJETO MENINOS E MENINAS DE RUA

Em nota enviada para responder questionamentos da reportagem do Estadão, a ONG informou que continua desenvolvendo suas atividades e que o processo no TCE é ‘de ordem administrativa’, supostamente podendo ‘ser sanado de forma técnica’. Veja na íntegra:

Apesar do sucateamento de políticas públicas no atendimento à crianças e adolescentes, o Projeto Meninos e Meninas de Rua seguiu desenvolvendo atividades com as crianças e suas famílias. Durante a pandemia, por exemplo, enquanto na Secretaria de Assistência Social estragavam cestas básicas, o Projeto seguiu no suporte a famílias da região .

Hoje as atividades com as crianças que ocorrem no espaço, são de caráter lúdico, pedagógico, social e de cidadania.

Em relação ao processo no TCE-SP é de ordem administrativa e não de idoneidade, que poderia ser sanado de forma técnica.

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