Processos contra Bolsonaro devem ir para 1ª instância, mas STF pode segurar casos
Com a derrota nas urnas neste domingo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) voltará a ser tratado pela Justiça como um cidadão comum. A partir de 1º de janeiro, quando Luiz Inácio Lula da Silva for empossado novo chefe do Executivo, Bolsonaro perderá o “foro privilegiado” que lhe dá direito a responder a processos apenas no Supremo Tribunal Federal (STF).
Processos que envolvem Bolsonaro em tramitação na Corte caem para a primeira instância da Justiça, em Brasília. Atualmente, ele responde a 58 denúncias de crimes comuns apresentadas durante seu exercício no comando na Presidência da República. Mas muitos poderão continuar em tramitação na Corte, de acordo com o entendimento dos ministros que julgam os casos.
A jurisprudência do Supremo prevê, via de regra, que todos os processos contra autoridades com prerrogativa de foro devem ser designados à primeira instância após a perda do mandato. Interlocutores dos ministros da Corte, no entanto, enxergam brechas no regramento que permitiriam aos relatores das ações decidirem se os casos permanecem sob sua responsabilidade ou se são distribuídos para outros tribunais. Nessa lista podem estar os inquéritos das fake news e das milícias digitais, que causaram atrito entre o STF e o Palácio do Planalto.
Nos casos em que são investigadas autoridades com foro e pessoas que perderam essa prerrogativa, há conflitos de entendimento sobre se a Corte deve desmembrar os processos para focar apenas nos investigados sob sua competência. Dentre os processos contra Bolsonaro no Supremo, 12 casos indiciam Bolsonaro conjuntamente contra outras pessoas, dentre as quais estão autoridades com foro privilegiado, como o ex-ministro e senador eleito Sergio Moro (União Brasil-PR), a deputada federal reeleita Carla Zambelli (PL-SP) e dois filhos com atuação no Congresso: o deputado federal reeleito Eduardo (PL-SP) e o senador Flávio (PL-RJ).
Pela jurisprudência, o foro privilegiado vale enquanto a autoridade exercer cargo público. “O foro por prerrogativa de função, muitas vezes visto como um privilégio, na verdade não é. Esse recurso é historicamente aplicado em todos os países do mundo democrático como uma possibilidade de a pessoa que desempenha funções públicas ter resguardo e não ser perseguida na sua ação e por sua manifestação de opinião. Quando acaba essa função, o foro deixa de existir. A autoridade passa a ser tratada como uma pessoa normal sujeita a ser examinada pelas autoridades competentes na primeira e na segunda instância”, explica Rubens Beçak, professor de direito constitucional na Universidade de São Paulo (USP).
Em 2014, o Supremo decidiu, com base no voto do ex-ministro Marco Aurélio Mello, que somente devem tramitar na Corte “os inquéritos que envolvam detentores de prerrogativa de foro”. No entanto, pessoas com trânsito nos gabinetes dos ministros entendem que cabe ao relator de cada processo colher o parecer do procurador-geral da República e analisar se os fatos da ação possuem “íntima ligação” entre os investigados para, só então, decidir se as pessoas sem foro devem continuar a ser julgadas pelo tribunal.
O professor de direito constitucional Thomaz Pereira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), reforça o entendimento em circulação na Corte de que cabe a cada relator decidir o que permanece no Supremo. “Em cada processo ou inquérito teria que ser tomada uma decisão individual. A depender, por exemplo, de outros investigados que ainda podem ter foro. Mas, em princípio, caso o presidente perca o cargo não haveria mais motivo para ele especificamente ser julgado no STF”, explicou.
Apesar das divergências internas quanto à regra a ser adotada neste caso, existem ao menos dois processos contra Bolsonaro que podem mantê-lo sob a mira do Supremo e do ministro Alexandre de Moraes, considerado por ele como principal oponente. O presidente é alvo de duas petições que foram incorporadas aos inquéritos das fake news e das milícias digitais. Há entendimento de que o foro permanecer porque os possíveis crimes são contra a “instituição” Supremo. Isso explica, por exemplo, o fato de o ex-deputado Roberto Jefferson ter sido preso, na semana passada, a mando de Moraes.
Nesses casos, caberá a Moraes decidir se mantém sob sua alçada as denúncias contra o presidente, ou se remete as investigações à primeira instância. Bolsonaro se tornou alvo dos inquéritos após realizar uma transmissão ao vivo na sede do Palácio do Planalto em que disseminou notícias falsas sobre o sistema eleitoral e atacou as urnas eletrônicas.
Além das ações 58 enfrentadas no Supremo, Bolsonaro ainda pode ter mais de 100 atos do seu governo derrubados pelos ministros. Estão pendentes de análise pela Corte processos apresentados por partidos de oposição e associações contra decisões do presidente. Essas acusações não tratam da conduta de Bolsonaro, mas sim de atos por ele praticados no exercício do cargo, o que não gera consequências penais. “Existem ações contra atos exercidos pelo presidente da República, como decretos e medidas provisórias. Isso tudo fica no Supremo. O que baixa (para a primeira instância) são atos personalíssimos de natureza criminal, ou seja, os crimes que ele (Bolsonaro) teria cometido”, explicou o professor Georges Abboud, que dá aulas de direito constitucional e processo civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Abboud pondera que, a depender da gravidade dos atos praticados no exercício da Presidência, Bolsonaro ainda pode sofrer consequências administrativas na Justiça. “Dependendo do desfecho do julgamento de alguns dos atos do presidente, é possível que Bolsonaro seja indiciado por improbidade, o que também é julgado pela primeira instância”, afirmou.