Promotor cobra abertura do HC de Bauru e denuncia fechamento de ala em hospital

01/02/2021 19:33
Por Rayssa Motta / Estadão

A briga judicial travada entre o braço do Ministério Público de São Paulo em Bauru, no noroeste paulista, e o governo do Estado para zerar a fila da Saúde na cidade é antiga. Uma ação civil pública foi aberta ainda em 2013 para cobrar iniciativas das administrações estadual e municipal. Com a escalada da pandemia de covid-19, que agravou a sobrecarga no Sistema Único de Saúde (SUS), o dinheiro bloqueado no processo, na ordem de R$ 17 milhões, deve ser usado para custear a internação de pacientes na rede privada.

A decisão foi tomada pela juíza Ana Lúcia Graça Lima Aiello, da 1ª Vara de Fazenda Pública de Bauru, na semana passada. Além do governo João Doria (PSDB), que deve custear metade da dívida, a Fundação para o Desenvolvimento Médico Hospitalar (Famesp), organização social que administra os hospitais de alta complexidade na cidade, é cobrada a pagar o restante. Ambos ainda podem recorrer da decisão.

“O título executivo demonstra a urgência das medidas a serem empregadas, não podendo os jurisdicionados, que aguardam a resolução da questão da espera por vagas de leitos hospitalares desde 2013, continuarem a mercê da boa vontade dos órgãos administrativos figurando em imensas listas de espera para internação”, diz um trecho de uma decisão anterior, tomada em dezembro pela mesma magistrada, que bloqueou o dinheiro.

A juíza atendeu a um pedido do promotor de Saúde Pública de Bauru, Emilson Komoto, que vem marcando pesado na fiscalização das ações do governo. Com mais de duas décadas de carreira no Ministério Público, Komoto foi transferido para Bauru em 2017 – cinco anos após a conclusão da construção do prédio do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP) na cidade, ainda na gestão do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB). O atraso na inauguração da unidade está no centro da disputa judicial, que agora ganha combustível em meio ao surto do novo coronavírus.

“Na verdade, o objeto da ação não tem a ver com a covid-19. Tem a ver com falta de leitos de uma forma geral, que é um problema crônico em Bauru, documentado há pelo menos oito anos”, explica o promotor.

Embora, na origem, o processo tenha sido aberto anos antes da chegada da pandemia, e a ordem para execução da sentença expedida em fevereiro do ano passado, o aumento da pressão sobre as taxas de ocupação dos leitos por pacientes com covid-19 trouxe os pedidos de abertura do HC de volta à baila.

“Só no dia em que eu fiz a solicitação, tinham 58 pacientes nas UPAs e no pronto-socorro esperando vaga de internação. A covid-19 piora ainda mais o nosso cenário”, acrescenta Komoto.

A cobrança pela inauguração definitiva do HC aumentou depois que a unidade passou a ser usada como hospital de campanha no ano passado. Em outubro, Doria chegou a dizer que o local seguiria aberto após a pandemia. O discurso da Secretaria de Saúde, no entanto, é o de que não há solução de curto ou médio prazo para a ativação do prédio, afirma o MP. A previsão é que as obras para adequação do edifício, estimadas em R$ 12 milhões, levem quatro anos. Não há data definida para o início da reforma.

O governo afirma que ainda não estamos no ‘depois da pandemia’. “Enquanto for preciso assistir casos graves de covid-19, manteremos leitos para esta finalidade”, disse em nota. A gestão garante que prepara a abertura de dez leitos de UTI no hospital para atender pacientes com o novo coronavírus. Por enquanto, conforme mostra a visita do promotor na última sexta, 29, não há movimentação na unidade.

Parcialmente equipado, mas com as portas fechadas, o hospital ainda é pivô de um procedimento preparatório de inquérito civil aberto no Ministério Público para apurar se é possível enquadrar as autoridades por improbidade administrativa.

Fase vermelha

Corre ainda, em paralelo à disputa judicial, uma briga pública extra-oficial entre o governo de São Paulo e o promotor Emilson Komoto na esteira decreto estadual que endureceu as medidas para contenção da pandemia.

Na última segunda-feira, 25, a prefeitura de Bauru foi notificada pelo governo Doria por descumprimento da fase vermelha, a mais restritiva do plano de combate ao novo coronavírus. Um decreto da prefeita Suéllen Rosim (Patriotas) permite o funcionamento do comércio, bares e restaurantes de segunda-feira a sábado, contrariando a regra estadual que barra o funcionamento diariamente, entre as 20 horas e as 6 horas, e em tempo integral nos fins de semana.

O dispositivo ganhou apoio de Komoto. O promotor defende que o governo estadual tem sido ‘negligente’ diante da falta de leitos na cidade e ignorado a realidade local.

“Eu apoiei [o decreto municipal], porque a gente acompanha tudo aqui. A gente apurou com todo o setor médico, de epidemiologia, que o problema não é o setor de comércio e serviços. A forma laranja, com horários prolongados, público reduzido e fiscalização rígida, estava funcionando. A gente está monitorando aqui, a gente é responsável. O boom que a gente teve é porque todo mundo migrou para o litoral no final de ano e voltou agora”, defende.

Além do Hospital das Clínicas fechado, o Hospital de Base de Bauru teve uma ala cirúrgica com 17 leitos desativada nos últimos dias, acusa o promotor. A denúncia chegou ao MP e Komoto esteve no local na sexta. Segundo ele, a informação repassada pela diretoria da unidade foi a de que houve corte de verbas do governo estadual na ordem de R$ 2 milhões mensais (cerca de R$ 750 mil para o próprio Hospital de Base e de R$ 1,2 milhão para o hospital estadual).

“O governo e a procuradoria-geral querem atropelar o trabalho dos gestores locais. Isso é bola dividida. Dizer se tem que fechar. Eu respeito. O absurdo é, nestes dez meses, o Estado não ter feito o dever de casa. O governo ter imposto várias restrições e não ter equipado e aberto de vez o Hospital das Clínicas – o que ia resolver não só o problema da covid-19, mas também das outras dezenas de doenças. Tem gente morrendo por falta de leito de UTI e cirurgia”, afirma.

Na outra ponta, o governo de São Paulo afirma que o que ocorreu foi um ‘direcionamento de 17 leitos para uso sob demanda’. De acordo com a gestão, a medida foi tomada considerando o ‘risco de realização de procedimentos eletivos neste momento’ e ‘os impactos financeiros da pandemia em todos os setores’.

O posicionamento do promotor , que apoiou a administração municipal, vai na contramão das orientações expedidas pela cúpula do Ministério Público de São Paulo. Na terça-feira, 26, o procurador-geral de Justiça do Estado, Mário Sarrubbo, enviou uma recomendação dirigida aos prefeitos para que as gestões adequem as legislações municipais e os atos administrativos ao decreto do governo estadual que endureceu as medidas restritivas. O ofício assinado pelo chefe do Ministério Público foi encaminhado em consideração aos prefeitos que iniciaram os mandatos em 2021. Em caso de descumprimento, adverte o documento, as prefeituras podem ser acionadas judicialmente.

As declarações em apoio à prefeitura também foram rebatidas pelo coordenador do Centro de Contingência contra a covid-19 do Estado de São Paulo, João Gabbardo dos Reis, que chamou o Komoto de ‘promotor da doença’ durante coletiva de imprensa no Palácio dos Bandeirantes.

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL DO ESTADO DE SÃO PAULO

A reportagem entrou em contato com Marco Vinholi, secretário de Desenvolvimento Regional do Estado de São Paulo, que através de sua assessoria de imprensa respondeu aos questionamentos abaixo.

ESTADÃO: O governador disse que o Hospital das Clínicas, que chegou a ser usado como hospital de campanha, ficaria aberto depois da pandemia. No entanto, segundo o Ministério Público de São Paulo, a informação passada pela Secretaria de Saúde é de que não há solução de curto ou médio prazo para a ativação. O governador prometeu algo que não pode cumprir? Há data para início da regularização, levando em conta que o prédio foi entregue em 2012?

Marco Vinholi: Este raciocínio está totalmente equivocado. A pandemia chegou agora a um momento igual ou pior em comparação à primeira onda. Ainda não estamos no “depois da pandemia”. Estamos no durante. E é justamente por isso que é crucial não apenas manter esse hospital de campanha, mas ampliá-lo. E é o que estamos fazendo: esse serviço funciona desde 2020, e neste mês já aumentamos em 50% o número de leitos entre 1º de janeiro e 1º de fevereiro de 2021, com direito à ativação de mais leitos de enfermaria somente na última semana. Mais dez leitos serão ativados na primeira quinzena de fevereiro e também estão em andamento medidas relacionadas a dez leitos de UTI, que dependem do município também. Enquanto for preciso assistir casos graves de covid-19, manteremos leitos para esta finalidade. O compromisso do Governo do Estado é e sempre será manter a assistência a quem precisar. As medidas para implantação de um serviço de alta complexidade no local envolvem discussões técnicas como aprimoramento de infraestrutura e perfil assistencial, sendo objeto de análise pelas equipes da Secretaria, para efetivação com total respaldo e coerência. Importante lembrar que o hospital que estava parado desde 2012 entrou em atividade em julho de 2020 e segue em funcionamento, cumprindo a palavra e o compromisso do Governo do Estado.

ESTADÃO: Na semana passada, a juíza Ana Lúcia Graça Lima Aiello, da 1ª Vara de Fazenda Pública de Bauru, determinou que o dinheiro bloqueado (cerca de R$ 17 milhões) em uma ação civil pública aberta ainda em 2013 para cobrar iniciativas das administrações estadual e municipal para resolver a fila da Saúde em Bauru deve ser usado para custear a internação de pacientes na rede privada da cidade. Além do governo estadual, que deve custear metade da dívida, a Fundação para o Desenvolvimento Médico Hospitalar, OS que administra os hospitais de alta complexidade na cidade, é cobrada a pagar o restante. O governo vai recorrer?

Marco Vinholi: O Estado recorreu da decisão em dezembro, quando houve o bloqueio de bens, e apresentou o planejamento de abertura de leitos na região de Bauru. Contudo, houve resposta negativa do desembargador. Estamos reunindo os elementos necessários para seguir recorrendo.

ESTADÃO: O Hospital das Clínicas ainda é pivô de um procedimento preparatório de inquérito civil aberto no Ministério Público para apurar eventual improbidade administrativa. Como o governo vê a iniciativa?

Marco Vinholi: Este é outro ponto que não faz sentido. O Governo do Estado tem priorizado a missão de salvar vidas e combater a pandemia de covid-19, assegurando assistência igualitária em todas as regiões, incluindo Bauru. Tanto é que implantou o hospital de campanha no prédio da USP, no próprio município, e vem expandindo a capacidade de leitos no local, que ainda terá mais 10 leitos de enfermaria e outros 10 de UTI, chegando a 50 leitos exclusivos para covid-19.

A Secretaria de Estado da Saúde está à disposição das autoridades para prestar esclarecimentos.

ESTADÃO: Komoto esteve na última sexta, 29, no Hospital de Base de Bauru, que teve uma ala cirúrgica com 17 leitos desativada nos últimos dias, segundo ele constatou na visita. De acordo com o promotor, a informação repassada pela diretoria da unidade de saúde foi a de que houve corte de verbas do governo estadual na ordem de R$ 2 milhões mensais (cerca de R$ 750 mil para o próprio Hospital de Base e de R$ 1,2 milhão para o hospital estadual). O governo confirma? Se sim, há justificativa para o corte?

Marco Vinholi: Não houve fechamento de leitos no Hospital de Base, mas sim direcionamento de 17 leitos para uso sob demanda, considerando o risco de realização de procedimentos eletivos neste momento e a responsabilidade do uso racional de recursos que deve ser adotada por qualquer gestão, considerando inclusive os impactos financeiros da pandemia em todos os setores.

ESTADÃO: Como o governo recebe a acusação de negligência?

Marco Vinholi: Não tem lógica. É uma crítica vazia, não fundamentada na verdade. A Prefeitura de Bauru não tem UTI hospitalar própria para covid-19 na cidade, e insiste em se eximir de qualquer responsabilidade, transferindo-a integralmente ao Estado. Por sua vez, o Governo do Estado mantém integralmente 50 leitos do tipo no Hospital Estadual de Bauru, e está preparando a ativação de mais 10 leitos de UTI no hospital de campanha.

Ignorar a importância do funcionamento do hospital de campanha e até mesmo o trabalho da pasta estadual em relação à ativação de leitos é negligenciar a população. Somente na região de Bauru, os casos e óbitos cresceram mais de 20% na última semana. Já são 74,2 mil casos e 1,2 mil mortes somente nessa área, sendo cerca de 1/3 das infecções e 1/4 das mortes especificamente da cidade de Bauru.

É essencial que as autoridades municipais deixem de priorizar posicionamentos ideológicos e priorizem a ciência e a vida, se alinhando às diretrizes estaduais para combater a pandemia. Desrespeitar as definições do Plano São Paulo, como a gestão municipal de Bauru vem fazendo, é mais uma evidência da falta de cuidado com sua população.

O Estado faz sua parte na instalação de novos leitos, contudo precisa que gestores e cidadãos respeitem os protocolos sanitários para reduzir a transmissão do novo coronavírus e, consequentemente, evitar que mais pessoas adoeçam e necessitem de atendimento hospitalar.

A Secretaria reitera, portanto, o apelo para que cada cidadão se conscientize de que este esforço conjunto deve estar acima de qualquer ideologia.

Por fim, e não menos importante, segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, diferentemente do que está sendo divulgado nos últimos dias pela prefeita e seus apoiadores, a Secretaria de Estado de Saúde investiu cerca de R$ 357 milhões em 2020 só em Bauru. Foram R$ 186,5 milhões para o Hospital Estadual de Bauru, outros R$ 118 milhões ao Hospital de Base de Bauru, pouco mais de R$ 37,9 milhões à Maternidade Santa Isabel, além de R$ 14,4 milhões ao Ambulatório Médico de Especialidades (AME).

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