Quando começou (e continuou) o divórcio entre dirigentes e povo no Brasil
Juristas de peso como Ives Gandra Martins e Modesto Carvalhosa; cientistas sociais, como Bolivar Lamounier; economistas, como Paulo Rabello de Castro; jornalistas, como Carlos Alberto Di Franco; e historiadores de peso, todos de renome nacional, em uníssono, afirmam que os poderes constituídos estão em aberta desarmonia e todos em choque com os legítimos interesses do povo brasileiro. Teria sido sempre assim? Cabe investigar, diria Machado de Assis, como nasceu e se consolidou essa desconexão.
O Brasil, como sabemos, já foi uma monarquia parlamentar ao longo do século XIX. Mas, mesmo antes da independência, na cerimônia do beija-mão dos tempos de D. João VI, ele recebia a todos sem distinção de cor ou status social. D. Pedro I preservou esse contato com o povo às sextas-feiras pela manhã; e D. Pedro II, aos sábados, à tardinha, também recebia quem quisesse falar com ele, na Quinta da Boa Vista, sem marcar audiência prévia ou exigir trajes a rigor.
Essa tradição marcou todo nosso século XIX desde 1808, com a chegada de D. João VI, até 1889, data do golpe militar que impôs a malfadada república. Um regime que nasceu sem apoio popular inaugurou esse afastamento dos dirigentes da população desde seu nascedouro. Dez anos depois do fatídico 15 de Novembro, a decepção com a república já era pública e notória. A famosa Chiquinha Gonzaga expressou na época seu desencanto.
Em Portugal, antes e ao longo do reinado do D. João VI, havia a tradição de um popular, por vezes, saltar na frente do rei, ou rainha, em plena rua, e gritar: “Justiça!”. E isso sem ser escorraçado por força policial. Acabava sendo ouvido pelo monarca. Tais práticas ilustram bem, até num regime absolutista, a preocupação do monarca em ouvir a voz do povo.
Logo após o 15 de Novembro, houve uma abrupta interrupção dessa nossa bela tradição. Ao invés de ouvir o povo, os militares golpistas passaram a lhe dar ordem unida, rebaixando-o à categoria de ouvinte sem voz. Humberto de Campos, escritor e membro ilustre da Academia Brasileira de Letras, em artigo publicado na década de 1920, relembrava o fato de que na monarquia havia vozes, ou seja, liberdade de expressão e imprensa livre, enquanto a república primava por um silêncio constrangedor. Censura e a autocensura já haviam se tornado corriqueiras.
É muito estranho que um país que gozou de plena liberdade de imprensa desde os reinados de D. Pedro I e de D. Pedro II, ou seja, por dois terços de século, de repente, não mais que de repente, se veja tolhido em se manifestar livremente, pedra angular das democracias merecedoras do nome. Essa tradição autoritária, por vezes ditatorial, foi uma constante na vida republicana brasileira desde o início do novo regime, seguidor que era da proposta do positivista de Auguste Comte sobre a necessidade de se implantar uma ditadura científica na esfera política.
A última faceta desta sina autoritária, e até ditatorial, que nos persegue, se manifestou na ditadura da toga, em que a ministra Carmen Lúcia do STF reconhece que a constituição foi violentada. E, mais ainda, nas decisões arbitrárias do ministro Alexandre de Moraes em que ele acusa, julga e exara sentenças, contrariando normas jurídicas seculares.
A monarquia parlamentar, desde a independência em 1822, durou cerca de 65 anos. O regime dito republicano, com mais de 130 anos de existência, já durou mais do que o dobro de tempo do regime anterior, sempre manchado por ditaduras, golpes e intervenções militares e até jurídicas como no recente 8 de Janeiro. Que tipo de falha político-institucional passou a nos perseguir ao longo de mais de um século?
Dois erros não podem ser cometidos quando queremos ter uma visão clara do que aconteceu no passado com repercussões negativas no presente: usar os valores de hoje para entender o ontem, e não praticar a chamada história comparativa. Ambos são comuns entre historiadores do Patropi, com as raras e honrosas exceções como a do falecido historiador José Murilo de Carvalho, dentre poucos outros.
A história comparativa, por exemplo, nos ensina que os países bem sucedidos ao longo dos tempos não abrem mão de um mecanismo eficaz do controle do andar de cima, sempre propenso a abusar do poder. O político será tanto melhor em ter um compromisso sério com o interesse público quanto mais frequente for seu monitoramento no dia a dia. A afirmação de Aristóteles de que a política é a mais nobre atividade que um cidadão pode exercer requer uma condição necessária e suficiente – desde que o poder seja fiscalizado.
Quem matou a charada foi Lord Acton (1834-1902), historiador e político inglês quando escreveu, com forte dose de realismo, o seguinte: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus”. O remédio já secular inglês foi fazer o monitoramento semanal do Primeiro-Ministro: às quartas-feiras, no Parlamento, em que é sabatinado por seus pares (question time); e, às sextas-feiras, numa reunião particular com o rei ou a rainha para quem por tradição não pode mentir. Poder sob rédeas muito curtas.
O patético, no caso brasileiro, foi que já tivemos um mecanismo semelhante ao longo do século XIX, o poder moderador, que foi um poderoso instrumento de controle da corrupção e dos desvios de comportamento dos políticos ao colocarem o bem comum no fim da linha do que deve ser preservado.
Afirmar que o poder moderador era uma jabuticaba só existente no Brasil revela completo desconhecimento de história comparativa. Ele está bem vivo, ainda que com menos poderes do que os vigentes no Brasil do século XIX, em toda a Europa, na figura do presidente da república ou de um monarca. Eles atuam na qualidade de chefes de Estado (um quarto poder), e entram em ação quando há conflito entre os outros três poderes, como vem ocorrendo, com maior frequência, no Patropi dos últimos tempos.
Até quando vamos continuar a ser um pato manco em matéria de organização político-institucional, dado que já a tivemos e nos foi funcional e eficaz? “Até quando abusarás de nossa paciência?”, diria Cícero hoje sobre o regime republicano brasileiro.