29/set 08:00
Por Ataualpa A. P. Filho

Preciso iniciar este texto com os versos do poema “Nada Além” do conterrâneo poeta Cineas Santos: “O amor bate à porta/ e tudo é festa. O amor bate a porta/ e nada resta.”

Usei o verbo “preciso”, porque vi, de perto, a realidade bater à porta da ficção com o desejo de fazer festa e desafiar o destino pelo acaso. No talvez, penduram-se expectativas…

Vi “um nunca mais” se desfazer depois de mais de 20 anos: um amor bateu a porta em um adeus que foi descortinado por uma foto que despertou mágoas adormecidas…

“Aquilo de que descuramos, nos escapa”, já afirmara Creonte, personagem da peça “Rei Édipo” de Sófocles, dramaturgo grego que viveu antes de Cristo. O descurar é obra do tempo: – o que se revela em um reencontro?…

Continuo com a ideia de que “o nada do antes é melhor do que o nada do depois, quando o durante foi tudo”.

O Sacerdote, personagem da citada tragédia, é quem indaga: “de que vale uma cidade, de que serve um navio, se, no seu interior, não existe uma só criatura humana?” Parafraseando-o, pergunta-se: de que vale um coração se, no seu interior, não existe nenhum resíduo de amor?

As rosas não têm espinhos, mas acúleo, que também fere. Mesmo entre pétalas desidratadas, eles perduram…

Às vezes, vejo-me atado à ideia de que a realidade e a ficção interagem no mesmo plano sem estabelecer limites. E, por deparar-me com uma realidade tão próxima da ficção, resolvi narrar um fato pelo qual me senti tocado, mesmo na condição de mero expectador.  A dor, da qual conhecemos a verdadeira intensidade, é a nossa.  Sobre as dores dos outros, apenas temos uma ideia.

Uma amiga educadora, no intervalo, na sala dos professores, pegou o celular para ver as mensagens. Eu estava do outro lado da mesa, corrigindo provas. Por um instante, levantei o olhar e a vi ruborizada:

– Aconteceu alguma coisa?

– Nada não…

Esse “nada não” estava cheio do que a fez mudar o semblante. Continuei tentando fechar algumas notas. Ela levantou, pegou a garrafa d’água e saiu.

A princípio, bateu o sentimento da inconveniência. Mas absolvi a minha indiscrição. Pensei que tivesse acontecido algo grave em relação à saúde de algum membro da família dela. Confesso que me desestabilizei, por alguns minutos.

O sinal tocou. Ela voltou, pegou a pasta e saiu. Fiquei mais um pouco, arrumei o meu material. Retornei à sala de aula, achando que deveria ter ficado calado.

Ao final do turno, nós nos encontramos novamente. Ela me parecia mais tranquila.

– Você vai pro centro?! – Dessa vez, fui eu quem pediu carona. Quando coincide o nosso horário de saída, é ela quem sempre oferece carona. E aproveitamos o tempo da viagem para falar dos ossos do nosso ofício.

– Espera só um minuto… 

Ela saiu em direção à coordenação. Voltou rápido. Quando ela se ausentou, o sentimento da inconveniência voltou: “não deveria ter pedido carona.” Contudo, mais uma vez, perdoei-me: “talvez, ela precise de ajuda…”

Trabalhamos juntos há bastante tempo. Coloquei, em minha defesa, o vínculo de amizade, o companheirismo, a parceria que se forma do ambiente de trabalho.

– Hoje esquentou, né! Tem previsão de chuva para o fim de semana. Precisa chover. Já tá faltando água na cidade.

Puxei conversa de elevador, para não tocar no assunto. Atravessamos o estacionamento, entramos no carro. Antes de ligá-lo, ela pensou alto:

– Esse negócio de rede social é uma loucura! Sempre entro no Face, no Instagram do meu filho pra ver as fotos, as mensagens, pra saber com quem ele se relaciona. Ele fica direto lá em Juiz de Fora. Só vem no fim de semana.

– Você tem direito, é mãe…

– Acho que tá rolando uma coisa esquisita…

– O quê? – A pergunta saltou pelo automático.

– Acho que ele está de papo com uma menina que também estuda lá na universidade de Juiz de Fora.

– Mas qual é o problema?!  São jovens…

– Entrei no Face da garota. Vi uma foto dela, em clima de família, ao lado de um cara que é o pai dele. Parece que ela é filha desse cara. Fiquei sabendo que ele havia se envolvido em outro relacionamento pelas bandas de lá e que já tinha uma filha. Mas eu nunca a vi.  Meu filho tá de papo com essa garota que parece ser irmã dele.  Quando ele vier neste fim de semana, vamos conversar sobre isso.

– Obrigado! Bom fim de semana! Desculpe, a pergunta indiscreta que fiz lá na sala…

– Sem problema! Realmente, fiquei sem ação na hora, mas já passou. Separei desse cara há mais de 20 anos. Ele sumiu daqui.  Nem sei por onde ele anda. Vi que você ficou preocupado, relaxa! A vida é assim mesmo…

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