Removendo poeiras

29/03/2018 12:00

Abro o gavetão da mesa da sala de jantar onde ainda guardo material de brincadeiras que eram utilizados pelos meus filhos e agora servem aos meus netos. Como educadora que sempre fui e não denego a formação, ofereço tudo que possa exercitar a imaginação e a capacidade de comunicação dos pequenos: cadernos de vários tipos (quadriculados, de folhas em branco, pautados,…), lápis, borrachas, canetinhas e tintas coloridas, joguinhos…

Pedia-lhes que fizessem uma pequena redação. Não era o que mais gostavam de fazer, mas o esforço inicial sentido como um trabalho em plenas férias, era compensado pelos resultados tanto imediatos, com a satisfação de ver que conseguiam produzir até textos engraçados, quanto mediatos quando na volta às aulas mostravam desempenho acima do esperado no quesito Português. Mas o lado mais lúdico ficava por conta dos desenhos ilustrativos que eram caprichados e coloridos, podendo até “se vingar da tarefa que; lhes tinha sido solicitada”, fazendo caricaturas, mandando a mãe num foguete para o espaço sideral… lembranças…

Enquanto vou remexendo neste providencial gavetão, revivo experiências tão gostosas que não sei se ainda terei oportunidade de vivenciar com novos personagens: viverei até os bisnetos chegarem para brincar com estas folhinhas em branco? 

Eis que em meio a estes objetos, um me chama a atenção. Retiro-o de onde tem estado esquecido, abandonado, não utilizado, e percebo que , apesar de tão bonitinho e multiutilitário, pois é composto de borracha, apontador, espelhinho e espanador, a borrachinha está manchada, ressequida. 

Pergunto-me: será que se eu der uma raspadinha, removendo a camada de poeira que nela se instalara, conseguirei devolver-lhe sua utilidade? Certamente não com o viço original, pois não é possível voltar no tempo, mas com as propriedades que lhe são devidas, quem sabe? Não custa tentar. É para já, penso, e imediatamente ponho mãos à obra acionando minhas habilidades de restauradora de objetos que percebo como valiosos, apesar de seu estado semi-inutilizável.

Que mania esta minha! Ou será mais uma vocação que reconheço em mim aoter escolhido como profissão a de me empenhar em devolver às pessoas que por (des)ventura se encontram “empoeiradas”, maltratadas ou se maltratando, a sua melhor forma, accessível no momento em que se encontram? Ou até recuperar o brilho encoberto por uma camada de descrédito em si mesmas, uma espécie de adormecimento de suas capacidades, que, se não chega a paralisá-las totalmente, mantém-nas atreladas a uma atividade automatizada, que não dá espaço para a criatividade, aquela que não lhes exige mais do que cumprir tarefas previamente ordenadas?

O caso mais comum é o da permanência em determinadas situações insatisfatórias mesmo quando reconhecidas como tal. Por que será que isso acontece?

É do conhecimento de todos que qualquer perspectiva de mudança assusta, amedronta e aciona todas as defesas de que se dispõe: racionaliza-se a situação tentando se convencer de que não é tão urgente ou tão grave assim; coloca-se impedimentos à tomada de decisão atribuindo a outrem a responsabilidade pelo que lhe ocorre, etc… e a pessoa se acomoda ao pensar que não depende dela, ou que não está ao seu alcance fazer o que precisa ser feito.

Enquanto estas defesas estiverem funcionando, procrastina-se a solução, pois fica impossível visualizar qualquer saída, ou seja, um caminho mais apropriado que lhe devolva sua capacidade de retomar as rédeas de sua vida. No trabalho psicanalítico dispomos de uma ferramenta – a “retificação subjetiva”- que pode ajudar o(a) cliente a perceber essas “manobras” de seu inconsciente (refiro-me às defesas), levando-o(a) a reconhecer como sua, pelo menos em parte, a responsabilidade pelo estado em que se encontra e pela maioria das coisas que lhe “acontecem”.

Não deixa de ser um trabalho árduo e por vezes implicando até em algum sofrimento. Mas, quando se conquista este nível de consciência, a sensação de estar no comando da própria vida é altamente gratificante e todo esforço dispendido terá valido a pena!

alicerh17@yahoo.com.br

Últimas