Renascimento do que foi arrasado marca coreografia do Grupo Corpo

10/08/2022 07:01
Por Ubiratan Brasil / Estadão

Foram dois anos em que o isolamento social provocado pela pandemia de covid interrompeu uma tradição, a Temporada Alfa de Dança, que sempre marcou o mês de agosto. Com a estabilidade sanitária praticamente normalizada, a tradição é retomada e a 19ª edição estreia nesta quarta, 10, com dois trabalhos do Grupo Corpo – até 18 de dezembro, outras cinco companhias nacionais e uma estrangeira vão se apresentar no Teatro Alfa.

A dança tem um apelo duradouro, porque oferece um sentido de autoexpressão que transcende a linguagem. E, depois de um período de reclusão forçada, o Grupo Corpo marca esse renascimento com um novo olhar de um trabalho antigo, agora rebatizado de Gil Refazendo. Trata-se de uma coreografia apresentada originalmente em 2019, com trilha sonora de Gilberto Gil. A companhia vai mostrar também Onqotô, criada em 2005.

“Não ficamos satisfeitos com o resultado e decidimos voltar à estaca zero a partir da trilha de Gil”, explica o diretor artístico Paulo Pederneiras. “É, na verdade, uma estreia, um novo espetáculo, pois refizemos tudo. Embarcamos na ideia de um renascimento, de um refazer, replantar, reconstituir.”

Assim, Gil Refazendo manteve a mesma trilha sonora e, na coreografia criada por Rodrigo Pederneiras, apenas foi preservado o solo da bailarina Mariana do Rosário na releitura de Aquele Abraço. “Fora isso, é tudo absolutamente novo”, reforça o coreógrafo, que preferiu começar o retrabalho a partir do meio do espetáculo, para depois refazer o início, uma solução para evitar percorrer o mesmo caminho.

No trabalho de repaginar o espetáculo, Paulo apoiou-se na canção Refazenda, de Gil, para jogar o foco na destruição das instituições, desde as matas até os povos indígenas. E, com isso, ganhou força a ideia dos girassóis adquirindo vida, que serve como imagem de fundo. “São girassóis que lentamente voltam a florescer”, conta Paulo. “Gravamos por 15 dias ininterruptos a transformação das flores vivas em plantas murchas, encerradas num local fechado; na projeção do palco, invertemos o processo. O público vai acompanhar, a princípio sem perceber e no final de maneira explícita, a vida que retorna.”

E, à frente dessa imagem, vestidos de linho em tom cru – moças de camisa sobre uma malha de duas peças, rapazes de calça e camisa de corte casual -, os bailarinos dançam sob a luz “branca e simples”, como define o iluminador.

A coreografia de Rodrigo Pederneiras também entrou no mesmo ritmo pulsante da música. “Temos uma trilha que quase não respira, é como um rio caudaloso, de correnteza forte. Entrei nessa dinâmica, com grupos grandes em cena, em vez da prevalência de duos e trios. E não há chão – é uma energia que sobe”, explica.

Na trilha de 38 minutos, surgem frases e temas retrabalhados de canções como Aquele Abraço, Realce, Tempo Rei, Andar com Fé, Toda Menina Baiana, Sítio do Picapau Amarelo, Raça Humana. Os arranjos abraçam tanto tambores ancestrais como distorções do aparato eletrônico, combinando, por exemplo, afoxé com naipe de sopro de pegada jazzística.

Segundo Gil, a trilha sonora foi montada a partir de quatro ambientes musicais: um choro instrumental; uma abordagem camerística (inspirada “em Brahms ou Satie”, aponta ele); um terceiro momento de liberdade improvisadora e, finalmente, uma construção abstrata baseada em figuras geométricas. “Círculo, triângulo, retângulo, pentágono, a volta ao círculo e finalmente a dissolução numa linha reta”, explica Gilberto Gil, no material de divulgação.

Amarelo

Já Paulo, responsável pela cenografia e iluminação, percebeu, por exemplo, que havia um excesso da tonalidade amarela. “Se fosse um espetáculo baseado nas artes plásticas, certamente funcionaria, seria quase que uma instalação, pois gostei do contraste entre o preto e o amarelo”, observou. “Mas me criou um problema para iluminar as cenas – como ideia era perfeita.”

Confira entrevista com Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo

Por que mudou tudo?

Na primeira versão, acho que olhei de modo equivocado para a trilha do Gil, que não para, tem um ritmo quase alucinante. Agora, nessa nova versão, entrei na do Gil e fiz isso também.

E foi preciso mesmo mudar tudo?

Absolutamente tudo. Fiz outro balé sem olhar para trás, é uma estreia. Não tem nada a ver com o outro, pois é uma trilha sonora que quase não respira mesmo.

Na coreografia, há mais solos ou mais grupos?

Ambos. Não utilizo nada de chão, tem algum duo, mas de uma forma diferente, muito rápido e pronto. O ritmo que foi traçado é completamente diferente do que normalmente a gente faz. É muito ritmado no começo e, depois, uma coisa mais lenta.

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