Respeita Januário
Os velhos na praça. Somados, viveram séculos. Viram as carroças de leite. A estrada de ferro. Um cruzou nas ruas com Getúlio Vargas (e cuspiu no chão, pois tinha preferências). Este conta do dia em que Drummond visitou a cidade. Aquele usa casaco que em outros tempos era japona, descombinando do chapéu de caídas orelhas de lã. Conta de greves e tiroteios entre integralistas e comunistas. Bibliotecas ambulantes, depósitos da história. Ali, desperdiçados pelos que correm rua afora teclando celulares, sugados pela velocidade do mundo virtual e compromissos céleres do mundo real.
Vi um ancião no velho obelisco. Procurava nomes nas placas. Antepassados. Parecia o último de uma espécie, urso solitário pelas campinas, visitando as ossadas de seus mortos. Parecia triste. Abandonado. No bom filme japonês Balada de Narayama, a pobreza da aldeia estabeleceu costume terrível. O ancião perde os dentes. Para eles, sinal de improdutividade completa. Cabe ao filho mais velho fazer a viagem. Carregar o idoso nas costas até ao cume da montanha e lá o abandonar. Há lágrimas e dores nessa tradição, mas há a fome e a miséria, que o sustentam como trágica condição de sobrevivência. Sem as mesmas carências, temos levado nossos velhos para montanhas geladas. Nossa sociedade produtiva, conectada e feita de redemoinhos de acontecimentos velozes, não quer reduzir a passada para acompanhá-los. Como a manada. Elefantes esperam, se um rebento da prole se atrasa. Vão socorrê-lo. Mas os elefantes velhos não merecem cuidados. Acabam ficando para trás e aos poucos se agrupam, se movendo lentamente, até a paralisia. É quando surgem os cemitérios de elefantes.
A velhice digna é direito fundamental do ser humano. Respeito à velhice é sinal da maturidade de um povo. Indianos tocam os pés dos mais velhos, como sinal de respeito. Mas do Oriente parece que só se quer por aqui o modismo. É duro ver gente cheia de filosofias generosas, que recolhe gatos, se atormenta por cães, mas abandona seus velhos. Há casos criminosos de velhos acorrentados às camas, sem cuidados, sem higiene, sem um fiapo de carinho ou traço de ternura.
Em outros tempos, eles seriam os anciãos da aldeia. Guardiões do fogo sagrado, conselho para decidir rumos. Viveram, têm a experiência, sabedoria acumulada, prudência que mantém uma família, um clã, um povo. Mas ao sistema capitalista, idosos não interessam. Não produzem, são cautelosos no consumo. Vindos de tempos duros, às vezes guardam dinheiro no colchão. Então, melhor desprezá-los.
Guardo admiração por João Paulo II, que não se deixou desprezar. Exibiu corajosamente as dores da velhice até ao final. Ministrava com dificuldade, em sussurros, exalando lições de vida por seu corpo curvado e combalido. Queriam uns que renunciasse ao papado, incomodados por sua resistente senectude. Ele mostrou, com bravura, como somos fracos e falhos, provando que mesmo na dor e no reumatismo pode um velho ter brio e flama, comandar e ser senhor do seu caminho.
Luiz Gonzaga tem a canção imortal. Voltando famoso à casa do pai, resolveu provocar o velho exibindo façanhas na sua sanfona de cento e vinte baixos. Pelo abuso, tomou um pito do “véi” Jacó: “Luiz, respeita Januário. Tu pode ser famoso, mas teu pai é mais tinhoso e com ele ninguém vai. Luiz, respeita os oito baixos do teu pai!”. Aquele pai fez mais com menos. Nossos pais e avós assim fizeram. Respeito a eles. Honra, como diz a Bíblia.
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