Romances sáficos ganham espaço e viram best-sellers
Nos últimos cinco anos, as redes sociais abriram espaço para um gênero da literatura que, anteriormente, só teria possibilidade de publicação em fanfics: os romances sáficos. Histórias de amor entre mulheres lésbicas ou bissexuais estão entre as principais buscas de leitores do Booktok.
Entre os usuários que consomem conteúdos sobre livros no TikTok, são mais de 26 milhões de visualizações na tag romance sáfico, 11 milhões em livro sáfico, 966 mil em romance sáfico nacional e por aí vai.
O termo “sáfica” deriva da poeta grega Safo, que há mais de 2.500 anos cantou o amor entre mulheres. Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, da escritora americana Taylor Jenkins Reid, foi o terceiro livro de ficção mais vendido no Brasil em 2021.
Entre os nacionais, o romance Conectadas, de Clara Alves, já vendeu mais de 100 mil exemplares pela Seguinte, selo da Companhia das Letras. Ainda que essas narrativas estejam sendo mais abraçadas por editoras tradicionais, a representatividade na literatura caminha a passos lentos, principalmente se comparada a produções de romances entre homens.
É o que relatam as autoras brasileiras ouvidas pela reportagem do Estadão: Clara e a estreante Bia Crespo, além da italiana Miriam Squeo, que lançou seu primeiro livro neste ano, cuja história se passa no Brasil.
A editora da Companhia das Letras, Fernanda Dias, e o sócio da Faro Editorial, Pedro Almeida, analisam essa movimentação do mercado editorial.
Produção x consumo
“Na verdade, houve um aumento no espaço que as editoras passaram a dar para romances com essa temática. A produção de histórias com romance entre garotas sempre existiu (nas fanfics, nas obras autopublicadas, nos manuscritos recusados, até em caderninhos que nunca viram a luz do dia), mas o mercado tem se mostrado um pouco mais aberto agora a essas narrativas.” É assim que Fernanda explica a movimentação do gênero no mercado editorial.
Para Pedro, essa maior receptividade do mercado é reflexo da demanda crescente de leitores. “Nós, editores, sempre apostamos na frente, mas não definimos o jogo sozinhos. É com o resultado do interesse do público que ampliamos os investimentos”, afirma.
Segundo ele, o engajamento dos leitores em histórias LGBT+ é grande justamente por trazer narrativas sobre “encontrar seu lugar no mundo”. “Nesse aspecto, não há outras literaturas que possam competir com o interesse dos jovens senão aquelas que os fazem se sentir compreendidos. Eles podem gostar de literatura de um modo geral, mas vão preferir as que, além da estética, apresentem horizontes que se conectem com sua própria vida.”
Diversos são os exemplos. Fernanda cita É Assim Que se Perde a Guerra do Tempo, de Amal El-Mohtar e Max Gladstone, publicado pela Editora Suma. “É uma novela de ficção científica que narra, por meio de cartas, a história de duas viajantes do tempo de grupos rivais que se apaixonam. O livro foi publicado nos EUA em 2019, ganhou os prêmios Hugo, Nebula e Locus, alguns dos maiores para ficção especulativa. Por aqui, a Suma publicou em 2021 e já vendeu mais de 15 mil exemplares, um número bem expressivo para o gênero no Brasil.”
Representatividade
A italiana Miriam Squeo, que lançou em maio o romance Por Trás dos Meus Cabelos, conta que decidiu escrever sobre o tema porque “experimentou na pele o sentimento de solidão e da ausência de referências”. “Escrevo também para poder oferecer um pouco aos outros das referências que eu não tive.” Na história, narrada em primeira pessoa e baseada na vida pessoal da autora, a personagem principal desenvolve uma paixão improvável pela amiga Léa. O romance percorre uma linha do tempo na Itália e a busca pela identidade da protagonista se assenta no Brasil.
A roteirista Bia Crespo também estreou na literatura neste ano. Em julho, ela lançou o livro Eu, Minha Crush e Minha Irmã, uma comédia romântica sáfica repleta de referências ao audiovisual brasileiro. “O audiovisual brasileiro é extremamente conservador e pretende agradar a muitas pessoas ao mesmo tempo, o que acaba silenciando as camadas mais vulneráveis da nossa sociedade. Dessa forma, a representação LGBT+ fica restrita ao cinema de arte e ao circuito nichado, algo que está longe do ideal. Eu quero contar histórias leves, divertidas, que cheguem às massas.”
Já Clara Alves comenta que Conectadas surgiu não só da necessidade de se enxergar em uma história, mas também de um processo de autoconhecimento. “Eu queria me entender. Me sentia pronta para lidar com alguns medos, tocar na ferida e, enfim, tentar me aceitar. Sinto que é por isso que tocou tanta gente: é uma história íntima e honesta.”
Na trama, as personagens Raíssa e Ayla se conheceram em um jogo online. Ayla sente que, com Raíssa, pode ser ela mesma. Raíssa, por sua vez, encontra em Ayla uma conexão que nunca teve com ninguém. Como Raíssa joga com um avatar masculino, Ayla não sabe que conversa com outra menina.
Desafios
Para Bia e Clara, além da representatividade, as produções sobre romances sáficos oferecem a possibilidade de retratar o amor sob a ótica da esperança e conquista, não apenas através da dor e preconceito, o que, por muito tempo, foi o único retrato possível para personagens LGBT+.
“Escrever essas histórias é mostrar que ser uma garota que ama garotas pode ser difícil, sim, mas não é errado. Que nós também merecemos um conto de fadas”, diz Clara. “Escrever histórias com protagonismo sáfico é mais do que uma resistência: é plantar a esperança de uma vida feliz. E não é a esperança, afinal, que nos move?”
No entanto, ainda que o mercado editorial esteja mais receptivo a essas histórias, não significa que o ingresso de novas autoras seja, necessariamente, fácil.
Segundo Miriam, muitas vezes a autopublicação é a única opção para as autoras. “É um processo muito solitário, já que depois de finalizado e lançado, todo o esforço para tornar a obra conhecida está por conta própria do autor. O acesso às grandes editoras é muito mais difícil quando você é um escritor ainda desconhecido.”
Outro desafio passa por uma esfera ainda mais difícil: o machismo.
Fernanda, da Companhia das Letras, reitera que o protagonismo masculino é “socialmente mais aceitável”. “A nossa sociedade tende a incentivar o confronto e a rivalidade entre mulheres – ainda hoje, algumas das cenas mais populares em novelas envolvem brigas e tapas trocados por mulheres. Querer consumir, acompanhar, ver, ler e torcer por um romance entre mulheres é duplamente ousado, duplamente transgressor e, portanto, há mais resistência.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.