Romantismo Educacional

15/08/2023 08:00
Por José Aparecido Da Silva

Nos últimos anos tenho apresentado e discutido ideias e conhecimentos sobre fundamentos educacionais aceitos, de modo dogmático, por grande parte da sociedade, assim como, os motivos pelos quais os mesmos são, usualmente, rejeitados por especialistas internacionalmente conhecidos. Neste manuscrito, discutirei o “romantismo” educacional que o sistema educacional brasileiro está vivendo e, a despeito de todas as evidências que o indicam, continuarem os responsáveis pela educação nacional a fazer vista grossa à realidade dos fatos.

Entendendo por “romantismo” o sentimentalismo exacerbado, sonhador e idealista, desprovido de senso prático e de realidade, o romantismo educacional nada mais é que a idealização de um sistema educacional que se deixa conduzir pela imaginação e não pela razão, ou seja, é a crença cega, surda e muda de que todas as crianças que não estão desempenhando bem nas escolas têm potencial para fazer muito melhor. Seus românticos educadores, acreditando que o desempenho acadêmico das crianças é determinado, principalmente, pelas oportunidades que elas recebem, acreditam que as habilidades inatas das mesmas, se existem, têm um papel mínimo neste desempenho, insistindo na premissa de que as escolas de nível fundamental e médio têm uma ampla avenida aberta para melhoramento.

Esta ideia romântica da educação é sustentada por dois pilares básicos. Primeiro: todos os estudantes têm uma habilidade infinita para aprender e, segundo, seus fracassos no desempenho acadêmico são falhas exclusivas das escolas e dos professores. Em relação ao primeiro, cumpre esclarecer que há uma crença de que todas as pessoas têm a mesma capacidade para aprender, desde que a elas sejam oferecidas as mesmas oportunidades. Entretanto, a realidade indica que igualdade de oportunidades não culmina em resultados iguais. Pelo simples fato de as habilidades variarem, as crianças também diferem, substancialmente, em suas habilidades para aprender conteúdos acadêmicos. Assim esclarecido, verifica-se que, muitas são as crianças que não podem aprender mais do que conteúdos rudimentares de leitura e matemática. E que as escolas têm um papel limitado sobre o melhoramento destas habilidades cognitivas.

Em relação ao segundo, acredita-se que fracassos no desempenho acadêmico sejam falhas exclusivas das escolas. Porém, esquecem-se de que, estas, por melhores que sejam, e sob as melhores condições, não podem elevar os limites de realização, uma vez que estes são delimitados, não pelo acesso aos mais variados recursos e tecnologias, mas, sim, pela inteligência. Na maioria das vezes, as escolas são meros bodes expiatórios de um sistema educacional que superdimensiona variáveis periféricas no processo de aprendizagem.

Mas, o que alimenta este errôneo romantismo educacional? A “fé” no poder das expectativas e a aceitação da teoria das inteligências múltiplas. A fé no poder das expectativas apóia-se no efeito pigmaleão, na ameaça do estereótipo e no movimento da auto-estima. O efeito pigmaleão entende que o desempenho dos estudantes é determinado pelas expectativas que os professores têm do mesmo. Se os professores elevam suas expectativas, o desempenho dos estudantes melhorará drasticamente. Se baixarem-no, entretanto, o desempenho piorará na mesma proporção. A ameaça de estereótipos concebe que, quando se diz aos estudantes que um teste mede habilidade inata, há diferença entre indivíduos. Mas, quando aos mesmos é dito que um teste mede o que eles têm aprendido, as diferenças desaparecem. Finalmente, o movimento de auto-estima reza que os problemas acadêmicos das crianças são causados pela baixa auto-estima. Elevando-se sua auto-estima, melhorar-se-ia seu desempenho acadêmico. Por outro lado, a aceitação da teoria das inteligências múltiplas suporta a ideia de que as crianças aprendem de diferentes modos e, por isso, todas as crianças podem aprender se nós adaptarmos sua educação aos seus talentos específicos. Acreditando-se nesta teoria, desacredita-se um fato, irrefutável por mais de cem anos, a saber, de que todas as habilidades são, de alguma forma, correlacionadas entre si, o que gera, com isso, apenas um ingrediente ativo: a inteligência geral ou habilidade cognitiva geral, como dizem os geneticistas.          

Como conseqüência, este romantismo educacional tem causado vários prejuízos, tais como, não melhoria da educação das crianças, sejam estas de alta, média e baixa habilidade acadêmica. Para as crianças com baixa habilidade acadêmica, os prejuízos podem ser tanto a humilhação em face de expectativas irracionais, quanto a negligência do que elas “poderiam” aprender na perseguição do que elas “não podem” aprender. Do mesmo modo, este romantismo prejudica a evolução das crianças com alta habilidade acadêmica, por duas razões: devido à monotonia que conduz à alienação da aprendizagem, bem como, devido à satisfação em relação ao menos do que com o melhor. Satisfazer-se com menos do que o seu melhor é impossibilitar toda e qualquer elevação no desempenho que se pode ter. Adicionalmente, este romantismo prejudica as crianças de inteligência média ao se basear na hipótese de que todas as pessoas de inteligência média precisam alcançar uma graduação altamente concorrida. Pergunta-se: será que todos os indivíduos devem, necessariamente, obter uma graduação universitária? É importante deixar claro que muitos empregos, que dependem muito mais de técnica que teoria, não reclamam graduação alguma. E são, realisticamente, muito bem remunerados e necessários. Mas, contrariamente a isso, os românticos educacionais preferem vender a imagem da graduação porque esta significa certo grau de inteligência e perseverança. Isto certamente interessa mais aos empregadores.

As graduações requerem, geralmente, inteligência para desempenhar tarefas de média complexidade. Já as mais concorridas exigem elevada inteligência pelo fato de, uma vez formados, seus graduandos terem que desempenhar tarefas da mais alta complexidade. Para Ciências, Engenharia e Matemática, por exemplo, a graduação tem importância significativa, pois, baseiam-se no que os estudantes conhecem. Mas, para inúmeras outras ocupações, estes conhecimentos não se fazem robustos. Em outras palavras, precisamos eliminar a falsa equação de igualar graduação com bons empregos. Entretanto, por causa desta, aquele que não obtém uma graduação é estigmatizado por não ter alcançado este objetivo. Há profissionais que são bem-sucedidos, bem-remunerados e felizes por terem abraçado, simplesmente, a função na qual melhor desempenham. Assim como há profissionais que se graduam, até mesmo, em mais de um curso, mas, infelizmente, experienciam o contrário: fracasso profissional, péssima remuneração e infelicidade pessoal.

O sistema educacional brasileiro deve fundamentar-se, portanto, na natureza da realidade humana e não na psicologia e pedagogia dos “achismos”, que assolam o país, de norte a sul. Em tempos mais modernos, Robert Reich, antigo secretário do trabalho norte-americano, afirmou que a era industrial ensinou a Humanidade a usar máquinas que substituíam a necessidade das habilidades humanas físicas. Hoje, na era pós-industrial, esta mesma Humanidade vivencia a era de manipulação simbólica e, não raro, vêem-se pelo mundo máquinas idealizadas para substituir as habilidades humanas mentais, seja no controle de vôos, seja na monitoração da crise econômica mundial atual. Entretanto, ressalta Reich que, manipulando e controlando tais máquinas, há, sempre, um operador humano.

Na atualidade, este operador enfrenta o desafio de ter que entender o que a máquina está fazendo. E tal entendimento requer, indubitavelmente, uma elevada inteligência, que processe números, relações, conhecimentos, proposições e suposições no menor espaço de tempo possível. Os operadores de hoje, necessitam, portanto de uma inteligência que os habilite a pensar além do momento que vivem. Desta forma, fica comprovado que cada sociedade humana depende das habilidades cognitivas de seus membros. Assim como, dentro de cada sociedade, há diferenças individuais, também diferentes habilidades são requeridas por diferentes sociedades. Não obstante, hoje, é difícil pensar em um trabalho que não requeira habilidades mentais, pois, a sociedade, em nível mundial, está cada vez mais complexa.

**Sobre o autor: Professor Titular Sênior do Departamento de Psicologia do Campus da USP de Ribeirão Preto, Professor Colaborador da UCP- RJ. Ex-prefeito do Campus da USP de Ribeirão Preto. Autor dos livros “O que todo educador deve saber” e “Sob o Olhar da Inteligência”.

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