‘Rússia atrai a extrema direita porque a financia’, diz historiador

20/03/2022 10:00
Por Marcelo Godoy / Estadão

Pesquisador do projeto de História transnacional da extrema direita, da Universidade George Washington, o historiador francês Nicolas Lebourg diz que a atração da extrema direita europeia pela Rússia se deve ao financiamento recebido do regime de Vladimir Putin. Autor da obra As Extremas Direitas na Europa, Lebourg diz que Putin representa um mundo multipolar e a prática cesarista de poder. Leia trechos da entrevista.

Como o grupo Identidade e Democracia (ID, extrema direita) no Parlamento Europeu age em relação à Rússia após a Ucrânia? E como agia no passado?

Os eurodeputados de extrema direita alinharam-se com a Rússia durante a guerra contra a Ucrânia em 2014. Em seguida, votaram contra as resoluções que se opunham aos interesses do Kremlin em 93% das votações, uma pontuação bem acima da coerência geral do grupo, em que seus integrantes apenas concordavam entre si em 69% das vezes. Na votação de 28 de fevereiro (após a invasão da Ucrânia), os representantes do ID se abstiveram. Existem nuances, mas os partidos de extrema direita se dissociaram da invasão, mesmo que, em alguns casos, como na Grécia, a polarização em relação a Putin permaneça forte.

Como a Rússia atraiu a extrema direita europeia?

A Rússia polarizou a extrema direita porque a financiava, financiava a mídia que os apoiava em casa, mas também por razões ideológicas. A extrema direita é fundamentalmente a favor de um mundo multipolar e de uma prática cesarista de poder: a Rússia de Putin representava ambos. No conflito russo-ucraniano (2014), vimos voluntários de vários países se juntarem aos dois campos. Esses voluntários eram de 50 países, o que ajudou a treiná-los em violência. Quando voltaram para casa, trouxeram isso na bagagem: desde 2015, o aumento da violência de extrema direita no mundo é de 320%. No entanto, não há uma distribuição igualitária do apoio nesse campo entre Rússia e Ucrânia: é a primeira que representa a principal atração da extrema direita.

Marine Le Pen disse que o Putin que ela apoiou no passado não é o mesmo homem que invadiu a Ucrânia. Qual peso pode ter o antigo apoio a Putin no destino dela e de Éric Zemmour na eleição presidencial do próximo dia 10, na França?

Tradicionalmente, questões de política internacional importam muito pouco no voto dos franceses. No caso de Marine Le Pen, sua base são as classes trabalhadoras, mais sensíveis a problemas de poder aquisitivo. Éric Zemmour perdeu quase um quarto de suas intenções de voto desde o início do conflito. Segundo a imprensa, é pela rejeição ao excesso de “Putinismo”. Mas isso é tão certo assim? Parece-me que duas perspectivas podem ter se alimentado mutuamente: a entrada de Emmanuel Macron na campanha e o início da guerra fizeram com que as classes médias pensassem que era melhor um homem de experiência do que um “aventureiro”.

Que peso a pandemia pode impor à extrema direita nas eleições na França e na Hungria? A onda populista vai retroceder?

A pandemia mostrou que a globalização fez com que a Europa perdesse seu aparato industrial em benefício da Ásia, o que é bastante positivo para a imaginação da extrema direita. Ao mesmo tempo, o peso da questão da imigração caiu na opinião pública, o que é ruim para a extrema direita. Por enquanto, o “software” da extrema direita europeia continua sendo aquele forjado entre o ataque do 11 de Setembro e a crise de refugiados de 2015: todo o problema se resume ao Islã. Obviamente, em um momento em que a opinião pública está preocupada com a pandemia e com a Rússia, isso é um pouco limitado. Portanto, a questão é saber se ela será capaz de se renovar.

Renunciar a vínculos com grupos extremistas é essencial para o sucesso da extrema direita, que busca a normalização de seus partidos. Mas é possível fazer isso sem perder eleitores?

É um paradoxo e um problema constante: se um partido de extrema direita é muito radical, fica marginalizado; se for muito moderado, será marginalizado. Marine Le Pen sempre citou o caso do italiano Gianfranco Fini: esse neofascista acabou mais centrista, moderado, respeitoso com o Estado de Direito do que o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Como resultado, seu partido está morto hoje. A extrema direita está sempre no fio da navalha, daí o fato de que o FN (Front National), na França, ou o Vlaams Belang, na Bélgica, podem ser partidos antigos, com votações honrosas, sem nunca conseguirem tomar o poder.

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