Ruy, Euclides, Machado e Nabuco
Ruy Barbosa, Euclides da Cunha, Machado de Assis e Joaquim Nabuco são os quatro grandes nomes da inteligência nacional da segunda metade do século XIX e início do XX. Eles tiveram trajetórias distintas nos campos literário e político. Mas acabaram convergindo em sua visão quanto ao des(a)tino do Brasil republicano, que continua a produzir corrupção, desigualdade social e políticos sem compromisso com a defesa do interesse público.
No campo da literatura per se, a figura de Machado é imbatível sem com isso desmerecer méritos dos outros três, em especial Euclides da Cunha, em que “Os Sertões”, sua obra monumental, tem méritos literários, além da análise arguta de nossos problemas sociais.
A obra de Machado de Assis se divide em duas fases, a romântica e a realista. A primeira são romances mais leves como “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva” (1874) e “Helena” (1876); a segunda nos revela um Machado realista com obras-primas como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) e “Dom Casmurro” (1899). Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi elevado, pela crítica internacional, ao panteão dos grandes escritores da humanidade. Este romance, em que Machado dá voz a um defunto, bem merece ser considerado precursor do realismo fantástico de Gabriel G. Márquez e outros, que fez a fama mundial dos escritores hispano-americanos.
Euclides da Cunha é outro monstro sagrado, também reconhecido aqui e lá fora, por sua obra imortal “Os Sertões”. A força deste livro é de tal ordem que levou Mario Vargas Llosa a escrever “A Guerra do Fim do Mundo”, baseado na dramática guerra de Canudos (1896-1897), retratada por Euclides. Foram necessárias três expedições do exército brasileiro para destruir completamente Canudos. Um episódio de vergonha nacional tal o grau de distorções e mentiras que envolveram a figura de Antonio Conselheiro. Revela também um exército bem mais envolvido com política do que com sua atividade precípua.
Vejamos agora a vertente política em que se destacam Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco. Ruy nos brindou com “Oração aos Moços”. Ainda me recordo dos tempos de juventude ao lê-la, empolgado, nos meados da tumultuada década de 1960 em que mais uma intervenção militar na política iria se prolongar até 1985. Em 1921, um Ruy, já arrependido de ter participado do golpe de 1889, alerta seus paraninfados de São Paulo com duras palavras: “Ora, senhores bacharelandos, pensai bem que vos ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis, as que põem e dispõem, as que mandam, e desmandam em tudo, a saber: num país onde, verdadeiramente, não há lei, não há, moral, política ou juridicamente falando.” Haveria avaliação mais atual 100 anos depois?
Joaquim Nabuco, em sua luta diuturna pelo fim da escravidão, nos brindou com a lucidez do que havia de melhor na inteligência nacional. Nabuco, com argúcia ímpar, em carta datada de 1895, ao Almirante Jaceguay, afirmava: “A razão aconselhava que a dinastia e a força armada se entendessem, se unissem, reciprocamente se apoiassem, animadas como eram do mesmo espírito de abnegação e patriotismo. Em vez disso, infelizmente o exército preferiu destruir a sua aliada natural e começar a sua própria evolução política, perigosa sempre para instituições militares”.
Uma geração depois, ao longo da década de 1920, deu-se o fenômeno do tenentismo em que uma parte dos militares se rebelava contra o modo como o Brasil era governado pelas oligarquias. Falta de democracia, fraudes eleitorais de todo tipo, mando arbitrário dos coronéis que exploravam as camadas mais pobres da população. E não havia mais a mesma aliada natural, a monarquia parlamentar, derrubada pelos próprios militares, para impedir os desmandos das oligarquias que travavam, e travam, o desenvolvimento do País.
Esse tipo de equívoco fatal na derrubada da aliada natural se manifestou também entre os nossos quatro grandes da inteligência nacional de então. Ruy e Euclides embarcaram na canoa furada que levou à proclamação da dita república. Seu compromisso inicial não era sequer com a abolição, vale dizer, com a luta contra a desigualdade social, mas sim ter campo livre para a defesa de interesses espúrios de grupos restritos.
O tenentismo durou pouco dado seu vício de origem de oficiais insubordinados. Quanto a como pôr fim nele, no problema dos tenentes, Getúlio Vargas, maquiavélico, foi curto e grosso: “Nomeando-os capitães”. Ou seja, aumentando-lhes o soldo. Foi este o fim melancólico do tenentismo.
Já Nabuco e Machado, antes e após 1889, perceberam com lucidez o que viria. Machado pedia aos deuses que “afastassem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais iluminou”. E acertou na mosca.
Ambos primam também pela clareza expositiva de seus textos em marcada diferença em relação a Ruy e Euclides. Estes abusam das hipérboles, de um certo gongorismo, e por vezes parecem se divertir em nos mostrar a quantidade de palavras cujo significado desconhecemos e que eles dominam com facilidade. Há mesmo um certo fascínio pelo formalismo. Nada disso encontramos em Machado e Nabuco, menos pródigos no uso de palavras pouco conhecidas, mas sempre pé no chão quanto ao conteúdo que desejavam transmitir. Essa ligação umbilical com a realidade lhes permitiu ver de antemão o que viria com a chegada da república, que escapou a Ruy e a Euclides num primeiro momento. A convergência posterior entre os quatro quanto ao desastre republicano se manifestou em Ruy e Euclides quando eles confessaram sua desilusão com a república. Essa convergência ainda não produziu o efeito de enfrentamento efetivo do desarranjo institucional de 1889. A boa notícia é que, aos poucos, através das redes sociais, a população começa a se dar conta de que foi enganada. Este é o melhor caminho para uma reação à altura.