Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

02/jul 07:55
Por Vanisa Moret Santos

Do susto diante do espelho à decisão pela vida

Em 1919, pouco depois do término da primeira Grande Guerra Mundial, Freud publicou um importante trabalho, intitulado “O Estranho” (Freud, 1919), também traduzido por “O infamiliar” pela editora Autêntica (1919). Nesse ensaio primoroso, ele fala sobre a angústia de nos confrontarmos com algo desconhecido em nós mesmos. Freud aborda  o sentimento de estranhamento do sujeito diante de um duplo especular. Trata-se de uma experiência aflitiva cuja sensação é de um não reconhecimento do sujeito diante de sua própria imagem. O estranhamento é seguido de um susto, de uma espécie de horror. Há algo nessa estranha imagem familiar que remete o sujeito assustado à ideia de decrepitude.

Em minha clínica, tive alguns relatos desse tipo de situação em que o sujeito toma um susto real diante de sua própria imagem. O resultado do susto produz associações importantes que fazem o sujeito mudar radicalmente de atitude, rompendo um ponto de repetição nociva.

Eu mesma experimentei isso quando, certo dia, ao me ver de costas no espelho, não me reconheci naquela imagem. Foi um estranhamento tamanho que me fez mudar radicalmente meu estilo alimentar e iniciar um longo e contínuo processo de eliminação de sobrepeso e, ao mesmo tempo, de ganho de saúde e leveza.

Na clínica, uma analisante decidiu parar de fumar abruptamente quando viu no álbum de família a foto de sua tia ainda jovem e bonita, mas que havia morrido por complicações de saúde resultantes do vício no cigarro. Outro analisante, ao se ver e ao se ouvir em um vídeo em que aparecia bêbado, dando parabéns a um amigo, não conseguia se reconhecer naquela voz arrastada e débil. No dia seguinte, decidiu se desfazer de todo o estoque de bebidas e jogou tudo fora. Ele já vinha falando sobre sua dificuldade de reduzir o consumo de álcool, mas seu ato radical só aconteceu depois do susto.

Em todos os casos, incluindo o meu, algo já vinha sendo falado em análise sobre um desejo de mudança. Mesmo que a palavra faça, desfaça, refaça, forme, deforme e até  transforme, para haver uma mudança real, é preciso haver uma decisão abrupta que culmine em um ato inaugural.

Desdobrar mentes e corpos em “ex’culturas” vivas é fruto de uma decisão em ato que leva a um trabalho contínuo, mas é preciso ter um início.

Ao longo do quarto capítulo de Totem e tabu, “O totemismo na infância” (1913), Freud aborda a estagnação do neurótico obsessivo diante de uma ação que ele não consegue realizar, especialmente se tal ação o favorecer de algum modo.  Nesses casos, o obsessivo, porta-se de modo infantil, sentindo-se proibido de agir por conta de seus pensamentos “mágicos” (punitivos). Ao final desse capítulo, Freud , aludirá  à peça, Fausto, de Goethe, em que o poeta alemão, faz referência ao Evangelho segundo São João: “No início era o verbo”, mas Goethe o modifica, trocando a palavra “verbo” por “ato”.  Freud concorda com a troca do poeta, afirmando, “[…] pode-se presumir com segurança que no princípio foi o ato”. (Freud, 1913).

Vemos, portanto, que é preciso haver uma decisão em ato para que se inaugure um novo modo de se conduzir no mundo, de se portar, de suportar novas ideias e de não suportar mais velhos hábitos que fazem mal ao sujeito.

Nada será como antes quando o sujeito decide realizar uma ação que dá início à construção de uma nova estrada. Palavras antecedem ao ato, mas não bastam. É preciso decidir realizá-lo. 

Por Vanisa Moret Santos

Instagram: @vanisamoretsantos

Últimas