Sem padrinhos políticos, 522 cidades carecem de verbas e ações públicas

17/09/2022 15:00
Por André Shalders, enviado especial, Cecília do Lago e Augusto Conconi / Estadão

O Brasil tem 522 cidades que foram penalizadas, nos últimos quatro anos, por concentrarem seus votos em candidatos a deputado federal derrotados nas eleições de 2018. Sem padrinhos políticos, essas cidades foram alijadas na distribuição de recursos federais e das políticas públicas. Levantamento do Estadão revela “desertos” de representatividade política, onde vivem 13 milhões de pessoas. Esse fenômeno está espalhado por todas as regiões, inclusive em Estados ricos do Sul e do Sudeste.

Deputados e senadores costumam dar mais verbas federais, proporcionalmente, para as cidades onde ganharam mais votos. A Constituição e a leis orçamentárias, porém, exigem que a distribuição siga critérios socioeconômicos e não eleitorais. Sem um mecanismo para garantir que o dinheiro vá para quem realmente precisa, o Brasil se transforma a cada eleição num país dividido entre ganhadores e perdedores.

No sertão do Piauí, duas horas de carro separam comunidades que estão nos dois extremos do que significa ter um representante no Congresso – e o acesso aos cofres federais que ele pode trazer. De um lado, os três mil moradores de João Costa (PI) têm tudo: um estádio de futebol que os moradores consideram “padrão Fifa”; três postos de saúde; dezenas de ônibus escolares e ambulâncias; uma creche nova e uma praça recém-inaugurada, com decoração típica de condomínio fechado. A prefeitura, base eleitoral do senador Ciro Nogueira (PP), atual ministro da Casa Civil, e de sua ex-mulher, a deputada Iracema Portella (PP), é a campeã nacional de verbas do orçamento secreto em relação à população. É como se cada morador tivesse recebido R$ 1.710,96 desde 2020. O montante é quase R$ 200 maior que a segunda colocada (Afonso Cunha, MA).

Enquanto isso, os 3,8 mil habitantes de Brejo do Piauí têm acesso precário à saúde e à educação. Qualquer ocorrência mais séria precisa ser tratada fora. A cidade apostou em um candidato derrotado ao Legislativo e ficou prejudicada no rateio das verbas. Pacato, o lugarejo tem Índice de Desenvolvimento Humano Municipal de 0,515 – bem abaixo da média do Piauí, de 0,571.

Em levantamento inédito feito ao longo de seis meses, o Estadão confrontou uma série de dados para revelar os “desertos” existentes no País, que, juntos, formam um território mais populoso que o do Estado do Paraná e equivalente às áreas da Bahia e de São Paulo. As maiores concentrações estão no sudoeste do Piauí, na área central de Goiás, no sudoeste da Bahia, no Bico do Papagaio – entre Tocantins, Maranhão e Pará -, no leste e no norte de Mato Grosso.

Em média, prefeituras dessas regiões receberam R$ 11,46 a menos por habitante desde 2019 em relação às demais cidades do País que concentraram os votos em deputados eleitos. Num município de 30 mil habitantes, por exemplo, significaria uma diferença de R$ 330 mil, valor equivalente a um ônibus escolar rural licitado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Derrotados

Brejo do Piauí deu 35% dos votos para o ex-deputado Paes Landim (PTB), que não se elegeu em 2018. Já na entrada da cidade é possível ver as consequências: a via que liga o centro à BR 324 está tomada por buracos. Há ali apenas duas ambulâncias e três carros de passeio para transportar os moradores que precisam ser levados para outros municípios, em busca de atendimento médico. O aposentado Luiz Gomes de Novais, 68, afirma que tudo fica “longe”. “Ou o prefeito ajuda, ou a pessoa morre”, diz. Desde o começo de 2019, a prefeitura recebeu R$ 3,5 milhões em emendas parlamentares de todos os tipos, o equivalente a R$ 925 por morador.

O “deserto” de representação do qual Brejo faz parte começa em Barreiras do Piauí, cidade de 3 mil habitantes na divisa com Tocantins, Bahia e Maranhão, e se estende até Itaueira, já na zona de influência de Floriano (PI), cidade-polo da região central do Estado. São 17 municípios, vários deles contíguos, que somam 119,1 mil pessoas numa área de 32,8 mil km². O IDH municipal na região é de 0,556, aquém da média do Piauí (0,571) e do Brasil (0,659). Além de ter Paes Landim, o reduto é base eleitoral histórica de Heráclito Fortes (DEM), também derrotado em 2018.

Tamboril do Piauí, a 40 quilômetros dali, é outro “deserto”. Em 2018, a cidade também deu 40,3% de seus votos para o candidato derrotado Paes Landim. Ao longo dos últimos quatro anos, a prefeitura, comandada pelo MDB, não recebeu nada das verbas do orçamento secreto – Estado de Ciro Nogueira, o Piauí é um dos mais beneficiados pelo mecanismo que marca a aliança entre o Centrão e o governo de Jair Bolsonaro. A urbanização em Tamboril é precária. As ruas asfaltadas se resumem ao quarteirão em torno da prefeitura: poucos metros depois, volta a predominar a poeira e o barro. O atendimento de saúde também é insuficiente. Moradores ouvidos pela reportagem reclamaram da falta de atendimento infantil.

Pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Jairo Nicolau diz que o problema é maior para cidades pequenas. “No Rio de Janeiro, por exemplo, muitos deputados vão ter domicílio na capital. Para mim, particularmente, não importa se o deputado mora no meu bairro, ou em Copacabana ou na Barra. Mas, para o interior, sobretudo para o tema da alocação dos recursos de emenda, essa é uma preocupação”, afirma. “Como os políticos buscam ocupar espaços sem representação, isso pode contribuir para minimizar o problema.”

Constituinte de 1987, o ex-deputado Miro Teixeira diz que existem mecanismos para atenuar a disparidade entre as cidades que elegeram e as que não elegeram representantes. “Me espanta que fiquem desassistidos esses cidadãos porque existem as chamadas emendas de bancada. A bancada é do Estado, não de uma região do Estado. Se eu tenho uma região que está sofrendo por falta de aplicação de recursos, os deputados poderiam resolver com uma emenda de bancada”, diz ele.

No norte mato-grossense, o “deserto” abriga 123,8 mil brasileiros. Eles moram em uma área do tamanho da Irlanda (69 mil km²), formada por 12 municípios contíguos, na região do Baixo Araguaia. Em 2018, votaram em peso num único candidato a deputado que não se elegeu – Gaspar Lazzari (PSD) obteve quase a metade (46%) de todos os votos nessas 12 cidades. Resultado: as prefeituras da região receberam 18,5% a menos em emendas do que a média das cidades de mesmo tamanho, no Mato Grosso. A diferença chega a quase R$ 100 por habitante, desde 2019.

A “punição” se repete por todo o Brasil. Desde 2019, o Congresso pagou menos emendas – sejam individuais, de bancada, de comissão e de relator (o orçamento secreto) – para municípios sem representantes. Em conjunto, as prefeituras dessas cidades, em todo o País, receberam R$ 421,06 por habitante, enquanto outras, de mesmo tamanho, levaram R$ 432,56 por morador.

Em Goiás, as cidades do “deserto” se concentram na região central do Estado. Uma delas é Itapuranga, a cinco horas de carro de Brasília. Tradicionalmente, o município é base eleitoral de políticos tucanos e do PP: em 2018, os mais votados ali foram os ex-deputados Jean Carlo (PSDB) e Balestra (PP). Juntos, tiveram quase metade dos sufrágios, mas não se elegeram. Para completar, Itapuranga elegeu um prefeito do PT, em 2020, após anos de dirigentes de direita. Diante disso, a prefeitura da cidade, de 25,5 mil habitantes, recebeu só R$ 652 mil de orçamento secreto – ou R$ 25,51 por morador, 67% a menos que a média nacional, de R$ 78,28.

O centro de Itapuranga tem aspecto bem tratado, com ruas sem buracos. Na praça central, crianças brincam à tarde sobre a grama recém-aparada. Mesmo assim, há problemas, principalmente na saúde. “Meu neto (bebê) teve uma infecção no pulmão. Tivemos que ir a Faina (cidade de 7 mil habitantes, a 46 minutos de carro) para ele ser atendido direito. Checaram ouvido, garganta, tudo. Foi bem melhor”, diz a trabalhadora rural Cléia do Socorro Vieira, de 37 anos. “Se precisar de um raio-X com laudo, aqui não tem. O atendimento é péssimo.”

Entenda: cruzamento de dados permite identificar “desertos”

Para identificar os “desertos”, o Estadão viajou 5,3 mil quilômetros e consultou três fontes de informações: o portal de Dados Abertos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que abriga milhares de planilhas sobre as eleições no País; o site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que fornece referências demográficas das cidades, e o Orçamento da União, acessado por meio da ferramenta Siga Brasil, mantida pelo Senado.

Todas as três bases de dados possuem uma coluna em comum: o código do município, atribuído pelo IBGE. Esse número de seis dígitos é o “CPF” de cada cidade brasileira e nunca muda: mesmo que o município seja rebatizado ou tenha o nome grafado errado, o código continua o mesmo.

O cruzamento resultou num banco de dados com 9,5 milhões de células, com detalhes sobre cada um dos municípios do País. Graças ao cruzamento, é possível juntar as informações e calcular o valor per capita das emendas parlamentares recebidas pela prefeitura daquela cidade, isto é, o montante total dividido pela população do município. É possível também agrupar as cidades de acordo com o resultado obtido na disputa para a Câmara dos Deputados, em 2018, para checar se há similaridades ou diferenças entre elas.

Para saber se as prefeituras dessas cidades receberam mais ou menos recursos que o esperado, a reportagem comparou o grupo com o conjunto de municípios brasileiros com população equivalente. De todas as cidades do País, 84 têm população maior do que aquelas dos “desertos”. São grandes e médios municípios, onde o dinheiro federal tem menos impacto. Por isso, foram excluídos da amostra.

Capitais como São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG) e Salvador (BA) têm mecanismos diferentes de captação de investimentos, além de gerar receitas próprias – algo distante da realidade das cidades pequenas, objeto da reportagem. Misturar as duas categorias seria comparar coisas não equivalentes. A escolha foi validada por especialistas consultados pelo Estadão.

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