Simone retorna em alto estilo, cantando obras de compositores nordestinos

18/03/2022 09:00
Por Julio Maria / Estadão

Havia uma expectativa por Simone de quase 10 anos. De como ela viria não apenas depois do ótimo álbum de 2013, É Melhor Ser, mas sobre a voz que traria depois do período de reclusão forçado pela covid-19. Simone fez lives e alimentou o mistério sobre o que seria seu 42º álbum de carreira com raras postagens. “Uma pessoa é o que a sua voz é”, ela dizia na primeira frase de A Propósito, a canção de abertura do disco de 2013, surgida de um bilhete enviado pela atriz Fernanda Montenegro. Agora, aos 72 anos, ela volta, e essas são as suas primeiras palavras: “Há algo de calmo e de raso nesse leito profundo”.

A frase é de Haja Terapia, lançada no início de fevereiro como o primeiro single. Seu autor é o pernambucano Juliano Holanda, um nome importante na história. Além de autor, ele faz a produção artística e toca baixo, conduzindo Simone com um tecido seco, suave, pouco e próximo. É assim que ela vai soar nas 12 músicas de Da Gente, o nome do novo álbum. Dez inéditas, escritas por autores nordestinos, e apenas duas regravações: Dezembros, de Fagner, Zeca Baleiro e Fausto Nilo, e ela, Haja Terapia.

Quem ligou Simone a Juliano Holanda foi Zélia Duncan, chamada para fazer a direção artística. Foi Zélia quem a fez ouvir a canção pela primeira vez. “E ouvimos juntas”, conta Simone, por telefone, da orla de São Conrado, no Rio. “Aquilo bateu direto, me pegou como um vulcão.” Juliano já havia gravado a canção em seu disco Por Onde as Casas Andam em Silêncio, de 2021. Era boa, com a nebulosidade de seu baixo que as imagens evocam em frases como “tem dias que o sal atravessa as paredes do mundo / a água em desnível acentua o relevo das horas”.

Mas Simone, de certa forma, a libertou e lhe deu outra vida, conduzindo tudo com mais esperança. Uma leveza que não é do conteúdo, mas da forma. Menos do que se diz e mais do como se diz. E isso tem a ver com uma voz relaxada, espaçosa e transbordante, mas também com a fé do violão de nylon de Webster Santos, o baixo de Juliano e a bateria, e sobretudo o udu, de Rapha B. Udu é uma moringa africana, um instrumento de percussão que leva tudo o que tem ao lado para um banho de cachoeira. A letra mesmo poderia estar em um metal gótico: “O demônio lunático pousa sobre a catedral em chamas / Aprendi a reconhecer a serpente pelo dourado das escamas / Metade das coisas que ele diz não faz o menor sentido / E a outra metade, eu preferia mesmo era nem ter ouvido / Já era pra ter saído”.

Sim, a frase que começa como uma profecia de terror termina com uma crítica política de Brasil, o que não parece estar longe de outra profecia de terror. É assim que Simone a interpreta? “Não posso falar pelo autor, Juliano. Cada um vai fazer a sua leitura desta criatura que ele diz.” Depois da entrevista, ela manda uma mensagem pelo WhatsApp reforçando algo com muita veemência, para que não haja dúvida: “Eu não sou Bolsonaro, eu detesto Bolsonaro”.

Sem programar muito, Simone se viu rodeada por autores nordestinos, e resolveu fechar o projeto com eles. Há uma ideia que o fará ter uma segunda parte, regionalmente instigante, mas Simone pede que o segredo seja mantido. Todos os fornecedores de canções do álbum trazem esse sotaque. “E veja quantas mulheres envolvidas, nada foi programado.”

Assim, o disco segue faixa a faixa. Boca em Brasa, de Juliano e Zélia Duncan, é um forró, um baião, com uma zabumba forte e protagonista. E Nua, um bolero, quase escondido de tanto silêncio entre as cordas de nylon, baixo e bateria. Tudo soa delicado nesta canção feita por Simone e pelo poeta português Tiago Torres da Silva. “E tudo é mais bonito assim / Do jeito que eu sonhei pra mim / A vida que eu despi de porto em porto / Mas porque a alma não se poupa / O tempo também tira a roupa / Devagar sobre o meu corpo.”

Estilhaços, de Cátia de França e Flávio Nascimento, provocou outro impacto nas descobertas de Simone, fazendo-a olhar para a força de Cátia e tentar respeitá-la, e A Gente se Aproveita, do recifense Martins, é outra vitória dos detalhes. Um flow criado para a voz seguir quase só e sublime, sem tentativas de se preencher espaços vazios. É um dos muitos momentos possíveis de se perceber como Simone segue cantando muito, inteira e intacta, com brilho e consciência, sabendo exatamente o que fazer e o que não fazer com a voz.

O álbum segue com outro bolero delicado, Por Que Você Não Vem?, de Joana Terra e PC Silva; Escancarada, de Gean Ramos e Rogéria Dera; Imã, de PC Silva, das preferidas de Simone; e, dentre outras, Dezembros. E fecha seu retorno com Naturalmente, de Socorro Lira e Roberto Tranjan, cantando com uma certeza de que, a partir de então, o mundo será melhor.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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