Só temos de Deus o que cabe em nós

20/01/2018 10:40

Este título maravilhoso, que minha competência não alcançaria, é fala de Clarice Lispector. Profundo de concisão, explica tantas coisas. Drummond tem o texto-enigma que por muitos anos me deixou pasmado. Em “Máquina do Mundo” o poeta se depara com a oportunidade de desvendar a “total explicação da vida” e dela abre mão. Há centenas de análises do grande poema, de aspectos metafísicos, teológicos, semânticos, com conclusões várias. Mas, para mim, desde que o conheci aos 12 anos, o poema ressalta o ato de abrir mão do conhecimento que não se pode suportar, pois não cabe em nós. Na descrição bíblica do Jardim do Éden, era vedado ao homem comer do fruto da árvore do conhecimento. Passagem intrigante, pois faz inevitável a indagação: queria Deus nossa ignorância? Não. É que há ciências cuja plenitude não cabe em nós. Podem nos enlouquecer. 

 Eu levava minha filha a museus, parava longamente diante de estátuas, quadros e paisagens; lia com ela Drummond e Leminski; levei-a a balés do Grupo Corpo, sinfonias de Mahler e óperas de Puccini. E tínhamos conversas longas, com abstrações e reflexões imensas. Um dia essa Mariana amada, a propósito da exposição a tantos estímulos, descreveu com perfeição o seu resultado: “Fica o que cabe”. Preciosidade dita por quem ainda não tinha lido Clarice.

 Há coisas que não cabem em nós porque não estamos prontos. Quem assistiu na época a “2001, uma Odisseia no Espaço” do Kubrick, viveu a experiência cinematográfica com a sensação de que, ao final do filme, o astronauta enfrentava um desses momentos. O súbito desvendamento, maior do que em nós pode caber. Moisés, ao encontrar-se com Deus no Sinai, não pôde olhá-lo cara a cara, pois tal visão lhe seria insuportável. A glória de Deus, maior do que a compreensão humana pode alcançar.

 Aprecio muito “O Enigma de Kaspar Hauser” de Herzog. No filme, baseado em história real, o personagem desde criança é mantido em cárcere escuro, sem ver nada ou ninguém, recebendo comida por uma abertura. Um dia, do nada, é abandonado no meio da praça da pequena cidade alemã. Não sabe falar, pensar, não sabe onde está. Reiteradamente imaginei Kaspar numa esquina da Avenida Paulista. Que esmagadores seriam ao homem sem defesas tantos estímulos sensoriais, barulhos, cheiros, letreiros, carros, multidão, edifícios imensos! Não caberiam nele.

 Pensamento que sempre me retornava ao poema do Drummond. O súbito desvendamento do mundo nos seria insuportável. A súbita revelação de Deus em toda a sua complexidade nos seria insuportável. Por isso Ele nos concede tatear rações de conhecimento, que nos levam aos poucos, do sistema geocêntrico de Ptolomeu ao heliocentrismo de Copérnico e daí à compreensão da infinitude das galáxias e à detecção das supernovas.

 Assim também em nossas vidas. Jamais entendemos tudo. Deus, quando atua em nós e sobre nós, muitas vezes não O entendemos. Para isso existe a fé, essa lanterna, que é dom de Deus. Com ela é possível seguir em frente na confusão do nosso cotidiano de dramas e dúvidas enquanto a vontade divina nos é revelada em gotas. Só lá à frente, por vezes, é que compreenderemos a lógica de ocorrências de décadas atrás. Os hebreus no deserto recebiam maná somente para um dia. Mais não cabia. Não tinham despensa. Assim é a caminhada com Deus. A cada dia o seu pedaço de deserto. O que cabe. Um dia, entenderemos. Estávamos sendo treinados para a Terra Prometida.

denilsoncdearaujo.blogspot.com

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