Sob desafio de um mundo polarizado, Itamaraty mira integração regional

08/01/2023 08:10
Por Carolina Marins / Estadão

Na primeira semana sob comando do novo chanceler Mauro Vieira, o Ministério das Relações Exteriores iniciou o que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promete ser uma ruptura com a política externa de Jair Bolsonaro. Segundo analistas ouvidos pelo Estadão, os primeiros dias de atuação do novo Itamaraty demonstram um retorno à tradicional política de integração regional que marcou os primeiros dois governos Lula. Mudanças no cenário global, marcado pela guerra na Ucrânia e disputa entre EUA e China, serão desafios para o novo ministério.

Assim como o governo anterior, que saiu do Pacto Global para Migração já nos primeiros dias de mandato, em 2019, o Itamaraty anunciou na terça-feira o retorno ao acordo da ONU. Dois dias depois, o país retornou à Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), citando a “plena reinserção do País ao convívio internacional” em comunicado oficial.

“Veremos uma política de diplomacia presidencial e de meio ambiente sendo colocadas no centro da política externa, dando prioridade para América do Sul, América Latina. Tudo isso vai dar um foco para política externa que a gente não teve nesses últimos quatro anos, especialmente nos primeiros dois anos de governo Bolsonaro”, aponta Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington.

REORIENTAÇÃO. Segundo Maria Villarreal, professora adjunta do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Unirio), há uma reorientação do Itamaraty com relação a vários temas: migração, Israel, Venezuela, meio ambiente e outros. “Temos um direcionamento muito claro do que vai ser a retomada da integração regional e a promoção do multilateralismo”, afirma. “Temos também mudanças relevantes na própria estrutura do Itamaraty, que não é uma coisa menor, como a nomeação de Maria Laura da Rocha como a primeira mulher secretária-geral das relações exteriores no País.”

Os retornos tanto ao Pacto Global para Migração quanto à Celac são vistos como naturais pelo novo ministério, especialmente em um contexto em que há mais de 4 milhões de brasileiros vivendo exterior e 1 milhão de migrantes no País. “O absurdo era o Brasil não participar do acordo”, afirma Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil em Washington e Conselheiro Emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

“O Brasil tem hoje milhões de emigrantes. Ele passou a ser um país muito mais de produzir migrantes do que de receber, então é claro que o Brasil tem todo o interesse neste acordo, porque é a maneira de tratamento dessas pessoas que está em jogo”, completa. O Itamaraty, então sob comando de Ernesto Araújo, seguidor de Olavo de Carvalho, retirou-se do acordo nos primeiros dias de governo em 2019, sob argumento de ferir a soberania nacional.

A consequência veio poucos meses depois, aponta Maria Villarreal. “O Brasil tinha suspendido no passado os voos de deportação de brasileiros provenientes dos EUA, que infelizmente foram retomados durante o governo Bolsonaro.” De outubro de 2019 a novembro de 2022, mais de 7,5 mil brasileiros foram deportados sob a política facilitada entre Bolsonaro e Donald Trump – e mantida por Joe Biden. “A gente teve um governo que abdicou da defesa dos direitos dos brasileiros no exterior. E o pacto retoma isso.”

NOVO ITAMARATY. Sob Bolsonaro, o Itamaraty entrou em embates com parceiros estratégicos do Brasil e se alinhou automaticamente com Trump. Mas as rusgas na área ambiental, principalmente com a Europa, provocaram a substituição de Araújo por Carlos França, de perfil menos ideológico. Agora, sob Vieira, a expectativa é de uma ruptura das duas fases, mas principalmente dos embates de Araújo, dizem especialistas.

“Vieira tem duas grandes missões”, afirma o professor de Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Guilherme Casarões. “A primeira, é normalizar as relações do Brasil com o mundo depois de quatro anos de um isolamento sem precedente na história do País. A segunda, é a liderança multilateral, cuja derrocada foi grande no governo Bolsonaro, por questões ideológicas, visões de mundo e outras questões.”

Segundo o professor, outra dificuldade será lidar com um Itamaraty que foi esvaziado de suas funções e compreender qual será sua atuação frente a outros ministérios que ganharam espaço nas discussões internacionais, especialmente a pasta da Agricultura sob Tereza Cristina que foi muito ativa em comércio exterior, e a pasta de Direitos Humanos comandada por Damares Alves que tomou a frente em discussões nos organismos multilaterais, como a ONU.

“Vamos ver quando começarem os problemas mais difíceis”, concorda Rubens Ricupero. “Até agora o trabalho foi consertar os erros anteriores, que é a tarefa mais simples, revogar políticas e deixar de fazer bobagem. Teremos de observar o que virá depois disso.”

COMPARAÇÃO. O novo governo assume um País mais fragilizado, sem conseguir se projetar como uma potência e uma das maiores economias. Ao mesmo tempo, o mundo se encontra mais polarizado, com a Rússia – um parceiro estratégico do Brasil e pária internacional – invadindo a Ucrânia, os EUA em embates com a China e novos governos autoritários.

“Essa polarização não existia 20 anos atrás”, lembra Casarões. “Vale ressaltar que quando Lula tomou posse em 2003, nem a Guerra do Iraque tinha começado.” Para os analistas, ainda não está claro como o Itamaraty se comportará frente a esses novos desafios e como lidará com os governos autoritários de esquerda da América Latina, como Venezuela e Nicarágua. “Eu diria que o encaminhamento da questão venezuelana é importante até pra esquerda brasileira e latino-americana, de poder dizer claramente que esquerda é democrática e não compactou com regimes autoritários dessa natureza”, afirma Casarões. “É um desafio difícil.”

3 perguntas para…

RUBENS BARBOSA

Ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington

O que podemos esperar de Mauro Vieira novamente no comando do Itamaraty, agora com o governo Lula?

A política externa vai ganhar um vigor como não teve no passado. Agora teremos uma política externa liderada pelo próprio presidente e que coloca o Brasil como protagonista nas relações internacionais. É uma mudança muito importante.

O que podemos esperar na política externa desse terceiro governo Lula frente aos dois primeiros mandatos?

Sabemos que é um outro mundo, com uma guerra na Europa, com uma tensão entre os EUA e a China. E creio que dependendo da evolução dos acontecimentos vai haver uma divisão – o mundo ocidental democrático e o mundo, como dizem os EUA, autocrático. Está insinuado, mas não está claramente dita essa posição de distância do Brasil de defender os valores ocidentais.

Como recuperar a imagem desgastada do Brasil?

Acho que vai ser mais fácil do que a gente pensa. Porque só o fato de ter mudado a política ambiental internamente e externamente já se recupera em grande parte a perda da credibilidade que o Brasil tinha sofrido nos últimos quatro anos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Últimas