STF não deu ‘cheque em branco’ para pescaria probatória da Polícia e da Promotoria no Coaf

03/abr 15:05
Por Fausto Macedo / Estadão

A advogada Ilana Martins Luz alertou nesta quarta-feira, 3, que o Supremo Tribunal Federal (STF) não deu “cheque em branco” para a Polícia e o Ministério Público fazerem “pescaria probatória” por meio de acesso direto a relatórios de inteligência do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), sem autorização prévia da Justiça. “O julgamento fixou alguns parâmetros, no intuito de evitar o que se chama de pescaria probatória.”

Ela destaca pelo menos três pontos que confirmam sua análise sobre a decisão dos ministros: necessidade de prévia investigação formal, evitando-se a solicitação em relação a pessoas não investigadas; necessidade de que o requerimento tramite pelos meios formais; e a necessidade de fundamentação da medida, que deve incluir as razões e os elementos que demonstram, ainda que de forma sumária, o crime antecedente e atos de dissimulação/ocultação do produto deste crime.

A decisão foi tomada nesta terça-feira, 2, pelos ministros da Primeira Turma do STF. Eles ratificaram o voto do relator, Cristiano Zanin.

Ilana Luz avalia que a medida tem potencial de interferir em diversas investigações atualmente em curso.

“Esta decisão tem o potencial de interferir em diversas investigações atualmente em curso”, diz Ilana. Segundo ela, o Coaf produziu mais de 22 mil relatórios de intercâmbio – solicitados por autoridades policiais e da Promotoria – apenas em 2023, “o que pode ter impacto em centenas de pessoas, haja vista que um mesmo relatório, em regra, faz menção a mais de um indivíduo além daquele que motivou a sua produção”.

Doutora em direito penal e especialista em compliance criminal, Ilana Luz ressalta que, “dada a inexistência de regulamentação legal da matéria, o STF deveria fixar outros parâmetros restritivos”.

Ela sugere “limitação dos legitimados” para evitar que qualquer autoridade requeira os relatórios.

Para Ilana, sem essa barreira poderá ser aberto espaço para uma “multiplicidade de investigações sobre o mesmo fato, em prejuízo do cidadão”.

“Também deve haver uma limitação em relação aos fatos, período, local das operações e sujeitos alcançados pelo requerimento, de modo a evitar que sejam atingidas pessoas que simplesmente transacionaram com aqueles apontados como suspeitos pelo Coaf”, recomenda a advogada.

Para ela, o próprio julgamento reforçou as balizas sobre a utilização dos relatórios, que não são meio de prova e não podem, isoladamente, embasar a decretação de medidas mais graves, a exemplo de busca e apreensão ou quebra de sigilo financeiro.

O advogado Sérgio Bessa ressalta que essa decisão não é inédita. “Ao contrário, apenas reforça o entendimento pacificado pelo STF ainda em 2019, quando, ao julgar o RE 1.055.941/SP, a Corte definiu ser possível que a Receita ou o Coaf compartilhem com o MP ou a Polícia, para fins penais, os dados fiscais e bancários dos contribuintes, sem a necessidade de prévia autorização judicial.

“Bessa pondera que, em nome da segurança jurídica, é positivo que os Tribunais Superiores, e, mais ainda, o STF, reiterem posicionamentos tomados há poucos anos. “O que, no tempo da Justiça, não é nada, principalmente quando sequer há grande mudança em suas composições.

Por outro lado, é de se pensar se, no mérito, não seria importante revisitar esse entendimento por meio de uma mudança legislativa, já que, num sistema processual penal acusatório, como o nosso, o ideal é que quaisquer medidas que relativizam, ou possam fragilizar, direitos e garantias fundamentais, como o é o direito aos sigilos bancário e fiscal, passem por prévio controle judicial”, defende o advogado.

Investigações arbitrárias

André Damiani, criminalista especializado em Direito Penal Econômico, considera “preocupante” a decisão do STF desta terça. “A decisão é preocupante, porque representa, na prática, a quebra do sigilo fiscal e bancário sem qualquer controle jurisdicional, reduzindo drasticamente a proteção constitucional aos direitos fundamentais do cidadão.”

Para Damiani, enquanto instrumento investigativo, a quebra de sigilo fiscal e bancário “representa medida invasiva, mitigadora de direitos fundamentais e, bem por isso, imperativo que deva passar primeiramente pelo crivo do Judiciário, onde serão ponderadas a necessidade e a proporcionalidade da medida em cada caso concreto”.

André Damiani é taxativo. “A decisão que confirma e reforça o entendimento do Tema 990 (do STF) confere verdadeira carta branca para o livre trânsito de informações sigilosas entre Receita Federal, Ministério Público e Polícia Judiciária, levando ao incremento de investigações arbitrárias, que se valem das também ilegais “pescarias probatórias”.”

Entenda

Para compreender o processo de produção dos relatórios, é fundamental considerar que a legislação de combate à lavagem de dinheiro determina que certos setores sensíveis da economia, como bancos, cartórios, seguradoras e empresas de luxo, monitorem seus clientes e operações, comunicando ao Coaf sempre que detectarem indícios de atividades suspeitas.

Com base nessas informações, o Coaf aprofunda suas análises para avaliar se há indícios de irregularidades que devem ser comunicados às autoridades criminais. O Coaf faz um trabalho de inteligência, focado na suspeição de operações que possam requerer investigações mais detalhadas pelos órgãos de persecução criminal.

O Coaf produz dois tipos de relatórios de inteligência: o RIF espontâneo, que é iniciado pelo próprio Conselho e enviado às autoridades; e o RIF de intercâmbio, encaminhado pelo Coaf às autoridades em resposta a solicitações específicas.

Em 2023, o Conselho produziu 16.411 relatórios espontâneos e encaminhou 22.905 relatórios de intercâmbio à Polícia, Ministério Público, Receita e outros órgãos.

“A questão do compartilhamento de informações entre o Coaf e as autoridades já foi objeto de julgamento pelo STF em 2021. Naquela ocasião, a Suprema Corte concluiu que o envio direto de relatórios pelo Coaf aos órgãos de investigação sem autorização judicial era constitucional, sem violar o sigilo bancário, pois esses documentos tratam de valores globais das operações, sem detalhamentos que comprometam o sigilo bancário”, destaca Ilana Luz.

Após este julgamento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o Supremo havia autorizado, apenas, o envio direto do Relatório de Inteligência Financeira pelo Coaf (espontâneo), sendo vedado o compartilhamento a pedido dos investigadores, sem decisão judicial.

Este também é o entendimento da advogada. Ela ressalta que a questão do requerimento direto das autoridades ao Coaf (RIF de Intercâmbio) “foi discutida de forma transversal, deixando dúvidas sobre a legitimidade desse procedimento”.

O advogado Bruno Borragine destaca que o STF vetou o “RIF por encomenda”, ou seja, aquele que, sem fundada razão, é solicitado pela Polícia ou pelo Ministério Público de maneira previamente direcionada.

Borragine avalia. “A decisão dos ministros a 1ª Turma do STF fala bonito, mas não vive o que diz, já que perdeu a oportunidade de resolver um problema concreto, que ocorre no dia a dia das investigações policiais, e que se dará sobre a interpretação da expressão “justificadamente úteis para a investigação”, conceito este que certamente constará do acórdão.

Bruno Borragine teme que a medida dê margem a episódios de abuso de poder dos investigadores. “Esta colocação, tal como construída, por demais abrangente, mas vazia de conteúdo, ao ser aplicada na prática da investigação criminal, poderá dar margem a abuso de poder das autoridades solicitantes já que serão formuladas solicitações “por encomenda” maquiadas de fundadas razões, ocasionando fishing expedition.”

Últimas