Supremo sem supremacia

17/10/2017 10:25

Direto ao que mais interessa: o Supremo Tribunal Federal acaba de abdicar da supremacia que lhe confere a Constituição da República. Em relação a quem tem mandato federal, não dará mais a palavra final. Transferiu-a ao Congresso Nacional, que pode revogar a decisão da mais elevada corte do Poder Judiciário.

Há no parlamento mais de uma centena de senadores e deputados federais com inquéritos e processos em curso perante o Supremo. Estarão agora à vontade, a serem absolvidos por seus pares, mesmo porque vigente dentre eles a possibilidade do "efeito Orloff”: "eu sou você amanhã".

O caso Aécio Neves é emblemático e serviu de pano de fundo para o julgamento da ação de inconstitucionalidade proposta por partidos políticos envolvidos na Lava Jato. Deixemos de hipocrisia, os ministros que votaram em benefício do Congresso tinham plena consciência de seus atos. Sabiam que estavam absolvendo, 'ipso facto', ainda que não 'ipso juri’, o presidente licenciado do PSDB. Na outra ponta, quem ratificou a primazia do Supremo, sabia de suas consequências éticas e moralizadoras na atual quadra histórica do país. Como ressaltou o ministro Luís Roberto Barroso, ao reconhecer que o STF pode impor medidas cautelares sem o referendo do Congresso, "a ideia de que o Judiciário não possa usar o seu poder cautelar para impedir um crime em curso é a negação do estado de direito”. Bem, com a raposa tomando conta do galinheiro, hoje saberemos o resultado do recurso de Aécio, ainda que de todo previsível.

Ao contrário do que fez o Supremo, não se pode confundir imunidade com impunidade. O instituto constitucional da imunidade, como garantia indispensável ao exercício independente do mandato parlamentar, não pode premiar o deputado ou senador que assalta o erário e faz de sua função um instrumento a serviço da corrupção. Eles são eleitos pela população para representá-la, em estrita obediência a preceitos legais e éticos que a dignifiquem, com exação no trato da coisa pública e longe do balcão de negócios escusos em que transformaram a ação política no Brasil. Não lhes é permitido cometer crimes, sob a expectativa da impunidade, diante de um julgamento em foro corporativo e inadequado, eivado de suspeição.

É por essas razões que o posicionamento do STF recebe duras críticas da sociedade. O placar apertado (6 a 5) dá a dimensão da divisão de seus membros, o que revela extrema gravidade, pelo que pensam os que votaram em proveito dos congressistas e contra o espírito de Justiça. Coube o desempate à ministra Carmen Lúcia, de quem muito se esperava. Decepcionou, proferiu um voto troncho, como bem observou o advogado Marsyl Marques, leitor destas linhas semanais. Em decisão que nem sequer conseguia articular, ao final da sessão, sustentou que assim o fez em homenagem aos e leitores, que conferiram a "suas excelências” a representação da soberania popular via mandato. Ora, ora, somente teria realmente reverenciado o eleitorado se tivesse agido de modo inverso, repelindo o absurdo de deixar a corrupção sem punição, com delinquentes de variada espécie escarnecendo da população.

Os parlamentares, como conveniente, certamente levarão ao pé da letra o acórdão do Supremo. Medidas cautelares apenas quando não interferirem no exercício do mandato, direta ou indiretamente. Em qualquer hipótese, com amplo poder de veto. Um golpe mortal na Lava Jato e em outras ações de combate ao crime no país.

paulofigueiredo@uol.com.br

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