‘Tentei ver além do crime bárbaro’, diz diretora de série sobre Elize Matsunaga

06/07/2021 08:20
Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão / Estadão

O único quadro que o pintor italiano Caravaggio (1571-1610), gênio do tenebrismo, da luz e da sombra, da maldade e da bondade humana, assinou foi A Decapitação de São João Batista, pintado por ele em 1608, sob encomenda da igreja católica.

Na pintura, o santo retratado, que, segundo o catolicismo, foi o responsável pelo batismo de Jesus, está com as mãos amarradas para trás e o corpo quase nu. Do ferimento de seu pescoço, escorre o sangue causado pelo corte da espada – é bem abaixo do vermelhovivo que o pintor assina a tela. Ao lado, Salomé espera a cabeça da vítima para entregá-la ao rei Herodes, a quem ele havia acusado de infidelidade, em uma bandeja de ouro. Outras obras célebres do artista são Davi com a Cabeça de Golias e Medusa Murtola.

“Caravaggio é meu artista favorito”, diz Elize Matsunaga, no primeiro dos quatro episódios da série documental Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime, que estreia na Netflix na quinta, 8, em 190 países. Dirigida por Eliza Capai, com produção da Boutique Filmes, a série conta a história do assassinato do empresário Marcos Matsunaga, herdeiro da indústria alimentícia Yoki, cometido por Elize em 19 de maio de 2012.

Elize, ré confessa, matou o marido com um tiro na cabeça no apartamento em que viviam, na zona oeste de São Paulo. Horas depois, esquartejou o corpo e abandonou os pedaços em diferentes pontos de uma estrada próxima à cidade de São Paulo. O motivo, segundo Elize reafirma na série, foi a descoberta de uma traição, dias antes do crime, e as ameaças constantes que ela sofria por parte do empresário, sobretudo a que se referia à única filha do casal, então com 1 ano e sete meses de idade.

Com quase quatro horas de duração, somando todos os episódios, a série ouve a versão de Elize, em sua primeira entrevista após a prisão, que a apresenta de maneira quase narrada, com pequenas alterações no tom de fala – um desses momentos é quando, justamente, mostra sua preferência por Caravaggio.

Em outro, fala com empolgação sobre suas habilidades na caça de animais silvestres, que praticava ao lado do marido – o casal tinha um arsenal de 33 armas em casa. “Depois que o animal é abatido, você precisa tirá-lo da mata e levá-lo para outro local”, conta. “Eu tenho um troféu de um veadinho abatido que comemos o lombinho dele com molho de ervas. Uma delícia. Recomendo”, diz, logo em seguida.

O terceiro ponto de emoção ocorre quando Elize fala da filha, que não vê desde que foi presa, logo após o crime. “Eu escutava a torneira gotejar e só pensava na minha filha”, diz, sobre os primeiros dias na prisão. É por ela que Elize afirma guardar um dos pontos jamais esclarecidos sobre o crime. “Eu tentei não errar, mas não consegui”, fala, em outro trecho.

Além de Elize, a série ouve as versões de advogados de defesa e acusação, peritos, delegado e promotor do caso, jornalistas, amigos de Matsunaga – os familiares da vítima não deram depoimento – e parentes da presa. Ao todo, foram 20 entrevistados.

A estrutura básica da série é semelhante à de outros dois recentes lançamentos do gênero true crime, com depoimentos entrecortados por imagens de arquivos e cenas exibidas por telejornais. Entre os nacionais que estrearam no streaming recentemente estão o Caso Evandro e Em Nome de Deus, sobre o médium João de Deus, ambos disponíveis na Globoplay.

Além de apresentar a versão de Elize, o programa também narra o embate da acusação e da defesa durante o julgamento e a tentativa – que resultou eficaz – de livrar a ré das duas agravantes das quais foi acusada: motivo torpe e meio cruel.

Ao final, Elize foi condenada a pouco mais de 19 anos de detenção em regime fechado. Em 2019, obteve a progressão para o regime semiaberto, com direito às chamadas saídas temporárias. Em duas delas, a diretora captou 21 horas de depoimento de sua personagem principal – além de um encontro de Elize com a avó e um passeio com sua advogada.

Paralelamente a isso, a diretora Eliza Capai (premiada por documentários como Espero Tua (Re)Volta, sobre o movimento estudantil que ocupou escolas estaduais em 2015, e O Jabuti e a Anta, que dá voz à população ribeirinha e indígena impactada com grandes obras na região amazônica) percorre questões que enxergou gravitar em torno do crime, como o machismo – puxado pelo fato de Elize ter sido garota de programa -, a tentativa de desqualificar a vítima, exploração do caso em programas policiais e a replicação da violência na sociedade.

“Eu queria refletir por que esses crimes ocorrem e como a sociedade e a mídia lidam com eles. O desafio foi fazer uma edição que não esbarrasse no sensacionalismo e que tratasse o caso com empatia e curiosidade a fim de entender a violência de uma forma mais complexa”, diz Eliza, diretora.

Esse olhar também permite que a diretora dê alguns respiros poéticos na série, sobretudo os que tentam humanizar a Elize entre revelações chocantes e depoimentos conflitantes. O documentário tem roteiro de Diana Golts, colaboração da jornalista investigativa Thaís Nunes, que negociou, por 18 meses, a participação de Elize na série, além da consultoria da criminóloga e escritora Ilana Casoy.

Em entrevista concedida ao Estadão por meio do aplicativo Zoom, limitada a 15 minutos de duração, Eliza falou sobre Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime.

Por que o caso Elize Matsunaga?

Venho do cinema independente, trabalho com questões de gênero há muito tempo. Escuto pessoas, sobretudo mulheres, vítimas de violência – seja da fome, da falta de educação pública de qualidade ou das grandes hidrelétricas construídas em seus ambientes. Há algum tempo tenho direcionado o meu trabalho para ouvir o outro lado destas histórias, ou seja, os algozes destas violências. No momento em que me aprofundava nisso, em um trabalho em um centro de detenção para um projeto do Itaú Cultural chamado Sentinelas, com homens que aguardavam julgamento por feminicídio ou violência contra a mulher, fui convidada pela Boutique Filmes para dirigir essa série, que já estava sendo gestada há bastante tempo por eles em parceria com a Thaís Nunes, jornalista investigativa. Eu queria refletir por que esses crimes ocorrem e como a sociedade e a mídia lidam com eles. O desafio foi fazer uma edição que não esbarrasse no sensacionalismo e que tratasse o caso com empatia e curiosidade a fim de entender a violência de uma forma mais complexa.

Elize não dava entrevistas. Por que você acha que ela aceitou falar com você, dar esse longo depoimento?

Foi uma longa negociação. A Thaís enviou várias cartas para Elize e conversou com os advogados dela. Criou-se um vínculo de respeito. Quando entrei no projeto – e eu e Thaís nos alinhamos muito em questões éticas -, fui ao presídio sem abrir câmera para conversar com a Elize. Quis saber de seus planos, explicar os objetivos do documentário, que era escutá-la de maneira empática, respeitando seu ponto de vista, e, ao mesmo tempo, respeitar igualmente as opiniões contrárias à dela. Foi tudo feito com muita sinceridade. Ela entendeu que não havia um desejo de utilizar sua fala de forma sensacionalista.

Como documentarista você tem esse olhar para temáticas sociais, para o feminino. Acha que faltava essa abordagem do caso?

Tentamos trazer para a série a discussão do machismo na nossa sociedade. O assassinato aconteceu em 2012 e o julgamento, em 2016. Nesse meio tempo, tivemos o que ficou conhecido como a Primavera Feminina, a aprovação da lei do feminicídio e uma nova forma de debate social e midiático sobre questões de gênero. Queira ou não, o caso da Elize está colocado nesse meio. Porém, não é porque sou feminista que eu vou defender o que ela fez, da forma como fez. Ela cometeu um crime bárbaro. Porém, tentei ver além disso. Até hoje, quando há saidinha temporária, há manchetes como ‘a ex-prostituta Elize Matsunaga…’ A Elize é tantas coisas além de ser ex-prostituta que para mim fica muito difícil entender esse tratamento sexista. Além disso, tentei mostrar algo muito mais complexo: a defesa da Elize se utilizou de métodos que são praticados, desde sempre, em crimes de feminicídio. Ou seja, pegam o passado da vítima e buscam o pior dele para justificar o crime (aqui, o envolvimento de Marcos com garotas de programa, como mostra a série). Nos crimes domésticos, quem morre, em geral, são as mulheres, e elas têm a vida devassada para que se diga ‘morreu porque mereceu’. E, nesse caso, por mais que haja uma inversão de gênero, há igualmente a utilização de um modelo machista que existe na nossa sociedade, na mídia e no sistema legal.

Você esteve presente em um episódio delicado e íntimo para a Elize, que foi sua primeira saída temporária. Como você tentou não interferir nesse momento?

Sempre que existe uma câmera ou um repórter por perto, há interferência. A maneira que pensamos para minimizá-la, e conseguir observar o que aconteceria se não estivéssemos ali, foi a escolha da equipe. A que estava à frente da entrevista, a que viajou com Elize e que conversou com seus familiares, era pequena e formada por mulheres. Mais do que isso, era uma equipe de pessoas sensíveis que entenderam a complexidade do encontro da avó com uma neta tão amada que virou manchete de jornal após matar e esquartejar o marido. Assim como fui conversar com a Elize antes de começar as gravações, também fui conversar com a tia dela antes de registrar o momento, para ver se ela estava ou não de acordo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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