Transpirava ingenuidade
Pude colher que se tratava de dois rapazes amigos e solteiros, todavia tendo deixado de lado os estudos para trás. E a decisão de ambos não decorreu por ausência de aconselhamentos de seus pais, ainda que semi-analfabetos, os quais almejavam, é certo, algo melhor para os filhos, dois companheiros, entretanto, de temperamentos aparentemente opostos.
Lilico, calmo e ingênuo, além de gozar bom emprego; ao contrário, Jonas, apelidado na comunidade por Joninho, tido como malcriado e apreciador de uma boa dose de cachaça, por isso mesmo realizado quando se via “metido” numa encrenca seja lá com quem fosse; talvez não respeitasse nem a si próprio pelas atitudes estranhas que fazia adotar, até porque a garrafa de cachaça “andava a tiracolo”.
Durante os fins de semana era costume de ambos saírem após as vinte e duas horas em busca de “noitadas” intermináveis, sendo a iniciativa partindo sempre de Joninho; o amigo o seguia sem muito opinar.
Os pais de Joninho, embora o filho já tivesse atingido a maioridade, constantemente preocupados com suas peripécias, já que considerado o moleque desavergonhado, assim enxergado por muitos; seu lema, gozar a vida.
Ainda que durante muitos anos os amigos participassem de “noitadas”, a última delas, contudo, não foi bem sucedida, sabem para quem? Não para Joninho e sim para Lilico, o moço tido como tranquilo e prudente como sempre fez parecer.
Não é que se retirando do recinto onde se realizava o “forró”, deixando para trás o parceiro, acabou por seguir, através da escuridão, a bela Antonia, serviçal do Zeca Severino, compadre, vizinho e amigo dos pais do travesso Joninho.
A música que continuava em tom elevado, eis que ninguém deu por falta do rapaz que decidira espreitar o “brotinho” na primeira oportunidade, antes que a moça chegasse à casa; e assim ocorreu, de “cara limpa”, sem que tivesse ingerido qualquer bebida, logo que a alcançou foi lhe dizendo: “agora quero lhe roubar um beijo que há tanto espero”! A jovem, espantada, negou-se a aceitar a proposta do espertalhão, depois de receber outras de caráter indecoroso e não pensando “duas vezes”, deu-lhe um bofetão no rosto deixando-o jogado numa barrenta poça d’água; a jovem em busca de ajuda assim que pôde se desvencilhou do traste.
Irritada, teve tempo de se dirigir ao sem vergonha dizendo: “seu conquistador barato, puxa vida depois de me divertir com um grupo de amigos e amigas, ainda tenho que enfrentar sua canalhice”! E aduzindo afirmou: “fique por aí e banhe-se nesta água imunda”. E mais: “Realmente não lhe conhecia!”
A “vítima”, por outro lado, tentava se erguer quando de repente surge Lilico e surpreso indagou: “O que houve com o amigo? E a resposta mentirosa surgiu entre os dentes: “tropecei e acabei por cair neste lamaçal”.
Todavia, durou pouco tempo tal desculpa uma vez que no dia seguinte o boato já correra e a verdade a surgir clara como o sol, reluzente como nascera naquela manhã.
Lilico, considerado por todos como o moço certinho e ajuizado, o rapaz correto em suas atitudes; ao contrário do amigo julgado malcriado e cheio de tantos outros defeitos. Assim é que, diante do ocorrido, surpresos especialmente os familiares do filho sonso e enganador.
“Virada a página”, a situação me fez lembrar o grande Mário Quintana, in “A Vaca e o Hipogrifo” quando escreveu: “Os que andam com segundas intenções não conseguem enganar ninguém. Está na cara… O perigo mesmo – porque é invisível – está nos que têm terceiras intenções”.
Lilico, certamente ante sua atitude e do “bom conceito” que gozava enquadrou-se nas “terceiras”, e justamente levando em conta a personalidade da “figura” recordei também o poeta quando escreveu:
“Transpirava ingenuidade…
Tinha até cara de otário…
Mas, no fundo e na verdade,
Foi refinado ordinário”
Muitos hão de indagar onde se enquadrou o malcriado e beberrão Joninho. Deixo, todavia, para o leitor responder.