Tutela militar e poder moderador
O Prof. José Murilo de Carvalho, profundo conhecedor de nossa história, publicou um artigo intitulado Tutela Militar na edição dominical de O Globo, de 31.05.2020. Ele inicia o texto fazendo uma lista de nossas sete constituições. E nos diz que cinco delas atribuem às Forças Armadas (FAs) um papel político e policial. Ato contínuo, juízes, advogados e mesmo ministros do STF publica-ram artigos para nos garantir que a constituição de 1988 não dá respaldo à intervenção militar com as FAs atuando como poder moderador. Quem tem razão, o nosso renomado historiador ou os nossos qualificados juristas? Passo a explicar as razões que me colocam do lado do Prof. José Murilo de Carvalho.
Para ir direto à questão em tela, o melhor é comparar os artigos da constituição do Império de 1824 e o da Carta de 1988 sobre o papel das FAs. Nossa constituição de 1824 diz o seguinte em seu Art.47: “A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”. E reforça, no Art.48: “Ao poder executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Terra e Mar, como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do Império”. Fica cristalina a supremacia do poder civil (o gabinete) sobre o militar. Tanto isso é fato que as pastas militares no tempo do Império eram normalmente ocupadas por civis. Uma tradição que se perdeu na república com militares ocupando três pastas ministeriais, participando assim da vida política até quase o final do século XX.
Vejamos agora o que diz a Carta de 1988 em seu Art. 142: “As Forças Armadas […] são instituições nacionais permanentes […] sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por inciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Quando se fala da lei e da ordem, fica explícito o papel político e policial das FAs. Mais grave ainda: é evidente a brecha deixada à intervenção militar ao permitir que poderia ser solicitada por qualquer um desses poderes, e – perigosissimamente –, pelo poder executivo (o presidente!), porta aberta para uma ditadura. É o que leva a quem tem pendores autoritários (ou ditato-riais) a afirmar que existe respaldo constitucional para a intervenção militar.
Quem acompanhou os trabalhos da constituinte de 1987-1988 sabe que este artigo provocou duras negociações com os militares, que preferiam os termos da constituição de 1946. Na verdade, essa função espúria dos militares como poder moderador vem desde a proclamação da República em 1889. Curiosamente, a triste “Polaca” de 1937, que no Art. 161 proibia às FAs de exercer papel político e policial, mal escondia o fato de que isso se devia à preocupação do general Goes Monteiro em manter a disciplina e a hierarquia para dar mão forte ao ditador de plantão Getúlio Vargas.
Essa permanente ameaça da presença militar na política continua a se manifestar ainda hoje. As declarações dúbias dos generais que compõem o governo Bolsonaro evidenciam a dificuldade de os nossos militares se afastarem da arena política. Um fala das consequências imprevisíveis para as instituições; outro nos avisa para não esticarmos demais a corda. Dia seguinte o primeiro nos tranquiliza ao afirmar que golpe não resolve nada. O general Mourão, vice-presidente, nos garante que não existe hipótese alguma de golpe.
Lamentavelmente, as lideranças civis, por um século, não enfrentaram o problema de pôr os militares no seu devido lugar, ou seja, sem se envolverem na política interna, e direcionados profissionalmente para a defesa externa do País. Pelo contrário, contemporizavam com esse desvio de finalidade. Tanto isso é fato que, a despeito de forte resistência, o ministério da Defesa só foi criado em 1999, no governo FHC, retirando dos militares seus três ministérios. Ao voltar a ser ocupado habitualmente por civis, restabelecemos uma tradição do Império, mantida até hoje por toda Europa e EUA, em que não existe normalmente um único militar com status de ministro de Estado.
Quanto ao poder moderador teria que ser atualizado. Mas ele nunca foi, de fato, uma jabuticaba brasileira. Nem ontem, nem hoje. A Europa toda adota regimes parlamentaristas. Tem, portanto, quatro poderes: o legislativo, o judiciário, o executivo e a chefia de Estado. Esta é exercida por um presidente eleito ou por um monarca, que é o poder moderador quando os demais entram em choque. Basta lembrar o rei da Espanha, Juan Carlos, sufocando o golpe militar em andamento. Ou o presidente da Itália, que tantas vezes interveio para restabelecer a harmonia. Ou seja, se são independentes, dificilmente serão harmônicos; se harmônicos, como ser independentes? Nesta contradição em termos, a Europa nunca caiu, como ocorreu com o Patropi republicano.
Nos dias atuais, o trauma já secular da presença militar na política acabou por provocar uma saudável e firme reação do Congresso, do STF e da população contra aqueles grupos extremistas que vão às ruas pedir a volta do regime militar. Mas, para nos livrarmos de vez da tutela militar, é indispensável uma reforma política em profundidade que implante o parlamentarismo, e que permita ao eleitor controlar de fato os políticos com o voto distrital puro e a revogação de mandatos (recall). E ainda um efetivo controle externo do Judiciário. Só assim nos livraremos de espetáculos vexaminosos no STF como aquele em que um de seus membros acusa seu colega, diante das câmeras de TV, que ele é motivo de vergonha para aquela Corte.
O patético em tudo isso é ainda termos que resolver, em pleno século XXI, problemas como tutela militar e poder moderador que o Império, a seu tempo, já havia resolvido no século XIX! Na verdade, a república começou com uma década perdida, 1890-1999, e nos deu agora mais quatro, desde a de 1980. Seria endêmica a perda de tempo?